Imagem @henrique.cristóvão
Texto originalmente publicado em 17 de março de 2024 no jornal "Público" .
Estamos a viver em tempos tumultuosos onde uma transformação climática epocal ameaça a sobrevida da espécie homo sapiens. A maioria dos limites biofísicos do planeta já foram ultrapassados ou estão na iminência de o ser, desde a omnipresença de microplásticos à perda de ecossistemas que sustentam a vida humana e não-humana na Terra. Nada disso é novo, obviamente. É resultado de um sistema socioeconómico apostado no crescimento económico infinito até à destruição completa da Natureza, sendo o capitalismo globalizado particularmente eficaz nessa tarefa. Já em 1972 (!), o relatório ao Clube de Roma “Os Limites ao Crescimento” simulou cenários sobre a sustentabilidade das sociedades humanas, concluindo que o crescimento contínuo da produção e do consumo teriam, inevitavelmente, de acabar no colapso durante o século XXI. Assim, o famoso economista Kenneth Boulding declarou impiedosamente perante o Congresso dos EUA que “[q]ualquer pessoa que acredite que o crescimento exponencial pode continuar para sempre num mundo finito ou é louca ou é economista”.
Perante este cenário e a possibilidade de um colapso iminente do sistema atual, seria expectável que o debate público e político se focasse na questão do crescimento económico que está na sua origem. Mas quem seguiu a pré-campanha e a campanha eleitorais que antecederam as eleições do dia 10 de março terá ficado surpreendido (ou não?) que os principais partidos, nomeadamente aqueles com assento parlamentar, preferiram discutir propostas políticas para promover mais crescimento, em vez de apresentarem planos para um decrescimento socialmente justo, de forma a evitar o colapso ou pelo menos mitigar os seus efeitos.
A dimensão da negação da realidade é deveras notável, tanto à esquerda como à direita, tendo sido discutidas localizações de aeroportos em vez do seu encerramento que é indispensável perante a desmesurada pegada ambiental do transporte aéreo. Mas claro, aquela viagem às Caraíbas soube tão bem e passar um fim-de-semana numa capital europeia tornou-se um símbolo de estatuto para qualquer membro da classe média-alta que se preze. Ah, a era fóssil foi tão boa! Mas a dura realidade é que não há como voltar. E não nos iludamos, o colapso já está em curso, de forma insidiosa, mas inegável. Numa sociedade que assenta na disponibilidade de combustíveis fósseis baratos (cerca 70% do consumo de energia primária em Portugal é de origem fóssil) para alimentar a sua atividade económica, qualquer ameaça ao seu abastecimento, seja por redução da oferta ou pela necessidade de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, tem efeitos desestabilizadores não só a nível económico, mas também a nível social.
O logro da progressão social associada à possibilidade de consumo desenfreado para quem trabalha, em tempos de vacas magras, já se revelou como sendo isso mesmo, uma ilusão. Uma parte significativa das pessoas, que dependem do rendimento da sua força de trabalho, tornou-se precária, ou por falta de vínculo laboral ou por ter um vencimento que já não permite fazer face ao aumento do custo de vida, pagando rendas, prestações, transportes, alimentação, fora qualquer despesa imprevista. Como agravante, isto acontece num contexto de fragilidades de sistemas públicos a nível da educação e da saúde onde tem sido impossível aumentar a produtividade, a não ser que se consiga imaginar uma professora do ensino básico com o dobro de alunos por turma na mesma sala, ou uma médica a dar o triplo de consultas por hora, quando já agora o tempo por doente é escasso. No caso da saúde, coexiste também uma explosão de custos devido à incorporação de técnicas avançadas de diagnóstico e terapêutica, inimaginável há poucas décadas, e o envelhecimento da população.
Esta situação tornou-se um autêntico festim para populistas que não se cansam de reclamar que os impostos apenas servem para pagar a corrupção quando quem trabalha tem dificuldade de se manter à tona. No entanto, para além da duvidosa veracidade da afirmação, esta argumentação encobre as causas sistémicas da crise que foi desencadeada pela persecução do crescimento económico infinito a qualquer custo e agora embate na realidade biofísica da sua impossibilidade. Não há aqui crescimento verde ou carro elétrico que nos possam salvar. Tudo isso requeria uma ainda maior destruição dos ecossistemas e da Natureza, numa tentativa vã de escarafunchar os últimos depósitos de minerais, cada vez mais rarefeitos e mais difíceis de aceder, aumentando assim as necessidades energéticas da sua própria exploração que depende exclusivamente da utilização de… combustíveis fósseis. Uma autêntica pescadinha de rabo na boca.
O sistema atual assenta na exploração da natureza e do trabalho baratos e acaba por concentrar a riqueza numa elite de super-ricos, do género Elon Musk ou Jeff Bezos, entre outros menos conhecidos. A exploração do trabalho humano no Sul global, nas fábricas asiáticas ou nas minas da África subsaariana, fornece à Europa produtos artificialmente baratos em grandes quantidades cuja compra é promovida por sofisticadas campanhas de marketing. Mas já não é preciso ir a outros continentes para observar os efeitos do trabalho barato. Toda uma cadeia de entrega de refeições no domicílio assenta na exploração de imigrantes do Sudeste asiático cuja presença serve para instigar campanhas anti-imigração contra pessoas de pele escura com a mesma leveza com que se recorre aos seus serviços para comer uma pizza acabada de sair do forno no conforto do lar.
O desastroso resultado eleitoral do dia 10 de março que se revela na marcada ascensão de um partido populista da direita também se deve às contradições dos restantes partidos que (ainda?) não foram capazes de reconhecer que o atual sistema capitalista de mercado se esgotou e que as receitas do passado (mais crescimento!) já não servem, tornando assim possível que se aproveitassem os sinais do seu desmoronamento para disseminar o veneno da misoginia e da xenofobia.
A revolução do 25 de Abril e a coragem do Movimento das Forças Armadas, cujos protagonistas arriscaram as suas vidas para acabar com a ditadura e a guerra colonial,devolveram a liberdade ao país e permitiram que se criasse um espaço democrático que naturalmente nunca será perfeito ou completamente garantido. Porém, para fazer bom uso desse espaço, será também preciso encontrar novas formas de envolver a população na discussão dos caminhos em direção a uma economia de bem-estar que assentará forçosamente no decrescimento planeado e socialmente justo, condição imprescindível para retornar aos limites planetários.
Hans Eickhoff, médico e investigador, membro da Rede para o Decrescimento