A centralidade da vida durante e depois da pandemia da Covid-19.
Giacomo d’Alisa
Investigador e bolseiro da FCT em pós-doutoramento, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, membro da Oficina de Ecologia e Sociedade
Do mesmo modo que o coronavírus se reproduziu exponencialmente na Europa, o slogan “Eu fico em casa” foi-se propagando. Essa expressão foi usada pela primeira vez pelo governo italiano em relação a medidas de contenção e gestão da emergência epidemiológica da covid-19 em todo o território daquele país. Logo depois, artistas, atores e influenciadores da cultura popular aderiram à campanha que tinha como objetivo convencer os italianos a minimizar aglomerações nos espaços públicos. A campanha “Eu fico em casa” apela à minimização do contato social. Devemo-nos isolar e cuidar de nós mesmos para não infetar os mais vulneráveis que, se forem contaminados pelo vírus, correm o risco de colapsar hospitais e unidades de cuidados intensivos. Provavelmente, se eles sofrem de patologias anteriores, isto pode ser fatal. A grande maioria dos italianos consentiu em isolar-se e a maioria fê-lo, não apenas por medo de adoecer, mas também para cuidar dos seus entes queridos. Ficar em casa tornou-se um processo rápido de consciência coletiva. A ideia de que cuidar de si envolve cuidar da comunidade e, em particular, dos mais vulneráveis, tornou-se senso comum. Hoje, o slogan espalhou-se por toda a Europa e fora dela. “Me quedo en casa” em Espanha, “restez chez vous!” em França. Até no Reino Unido, o primeiro-ministro disse o mesmo (depois da sua primeira reação ao vírus ter sido apostar na imunidade de grupo: “You must stay at home“).
Tendo compreendido a importância dessa consequência social produzida pelo vírus, ou seja, a prioridade que foi colocada no cuidado das pessoas; não quero propor ingenuamente uma leitura adocicada das decisões políticas que foram tomadas nos países afetados. Essas decisões demonstram, em primeiro lugar, como as estruturas socioeconómicas modernas não estão preparadas – mesmo as mais avançadas tecnologicamente – para enfrentar uma pandemia. Apesar de, segundo alguns representantes das elites mundiais, os fenómenos pandémicos serem considerados o perigo mais preocupante nas sociedades contemporâneas.
A maioria dos governos europeus optou, por vontade popular – poderíamos dizer – por resguardar a vida e não a economia. É certo que existem algumas exceções, e não insignificantes, como as primeiras tentativas do governo britânico de promover a estratégia de imunidade de grupo e as revindicações de economistas de partidos políticos republicanos americanos que pediram aos cidadãos mais velhos que se sacrificassem em nome da economia.
Infelizmente, também é verdade que a narrativa que nos convida a cuidar da comunidade e dos mais vulneráveis tem algumas falhas notáveis na prática do governo. Ficar em casa foi, acima de tudo, um convite dirigido ao cidadão consumidor, estudantes, comerciantes e pequenos artesãos, mas não aos trabalhadores em atividades produtivas. Na Itália, somente depois de ter sido excedido o número de mortos na China, o governo decidiu fechar as fábricas, mas não todas. Entretanto, sabe-se que existem muitas categorias de trabalhadores que correm o risco de serem infetados pela covid-19. Este problema foi destacado na Espanha. Alguns dias após a declaração do estado de emergência, eles exibiram uma faixa que dizia: “a romantização da quarentena é um privilégio de classe!”
Fonte: Anónimo. Partilhado pelo WhatsApp
Em segundo lugar, para os mais velhos que (e mais vulneráveis) que vivem sozinhos, os governos não fornecem com rapidez o apoio necessário, e foram eles mesmos que tiveram que sair às ruas para obter rendimentos mínimos para sobreviver à quarentena. Além disso, durante as desinfeções devido ao coronavírus levadas a cabo nos lares de idosos na Espanha, alguns foram encontrados abandonados ou mortos nas suas camas.
Acresce que a casa, em certos casos, não é um lugar agradável para todos. Portanto, o espaço privado sem acesso a um espaço público torna-se facilmente uma prisão. Pode não ser coincidência que os únicos que se rebelaram contra os decretos de isolamento foram os presos que viram cancelado o único horário de visita dos seus entes queridos. Além disso, os locais nos quais vivemos nem sempre são os lugares em que nos sentimos “em casa”, como demonstram as escapadas noturnas que ocorreram para em direção ao sul da Itália, algumas horas antes de um decreto ministerial declarar a Lombardia uma zona vermelha deixaria de haver possibilidade de sair até nova ordem. Sem mencionar o facto de que ficar em casa para muitos pode tornar-se um pesadelo; para muitas crianças e mulheres, os lugares domésticos são o espaço de violência e abuso; ou o facto de muitos não terem casa e serem obrigados a fazer fila para as poucas cantinas que ficaram abertas nos dias do coronavírus.
Há também aqueles que correm o risco de perder as suas casas todos os dias: não é por acaso que, aos primeiros sinais da expansão do coronavírus, os movimentos espanhóis pelo direito à habitação se mobilizaram contra o risco de despejo durante a pandemia.
Finalmente, muitos ativistas lembraram que centenas de milhar de pessoas em várias partes do mundo, e também dentro das fronteiras europeias, estão em campos de refugiados, lugares onde as pessoas estão alojadas em condições indignas e onde certamente não podem praticar o distanciamento social promovido através da campanha: “eu fico em casa”. Esta lista que tenta dar visibilidade a quem, por um bom motivo, é incapaz de cumprir a ordem de “ficar em casa”, não é exaustiva; por isso, convido a ler as pertinentes análises interseccionais de algumas feministas. Tendo em mente que a obrigação de ficar em casa afeta desproporcionalmente grupos específicos de pessoas, mas não irrelevantes, proponho neste documento focar-me no potencial transformador do senso comum generalizado na pandemia, segundo o qual ficar em casa é a melhor coisa a fazer agora. Afinal, parece haver 1,7 mil milhões de pessoas em 50 países diferentes confinadas em nas suas casas. Aproveitar a oportunidade oferecida pelo estado de emergência devido ao coronavírus para transformar a sociedade injusta, patriarcal, colonial e insustentável em que vivemos é o desafio para muitos ativistas que se organizam em espaços virtuais. Este é um momento auspicioso para muitos intelectuais influentes proeminentes, entre muitos, eu apenas menciono Klein e Žižek.
Minha hipótese é que o cuidado de si mesmo, da própria comunidade e da vulnerabilidade interdependente que nos caracteriza assumiu um papel importante nestes dias de pandemia causada pela Covid-19. Uma centralidade que oferece a possibilidade de abandonar a ideia de que o crescimento económico serve para resolver todos os problemas da humanidade e que, ao colocar os cuidados no centro da questão, nos permite finalmente discutir qual é a vida que vale a pena de ser sustentada, durante e depois da pandemia. Existem várias maneiras de tirar proveito dessa oportunidade transformadora, mas acho que a principal é transformar a campanha europeia que propõe um rendimento básico de emergência durante a pandemia, numa campanha para um rendimento de cuidado de longo prazo. Antes de definir os motivos desta campanha, procuro definir a importância das atividades de cuidado necessárias ao bem-estar das sociedades contemporâneas.
Os tempos de cuidado antes, durante e após a pandemia da covid-19[1]
As atividades de cuidados são o conjunto de ações diárias que realizamos para garantir o nosso bem-estar e o contexto socioambiental em que vivemos. Todas as organizações sociais dedicam uma quantidade enorme de tempo ao trabalho necessário para apoiar e cuidar das relações humanas e dos recursos naturais que servem para a sua própria reprodução. Esse fluxo invisível de horas de trabalho não remuneradas também é enorme nas sociedades industriais e digitais. Por exemplo, considera-se que, cada hora de trabalho remunerado na Catalunha, uma das regiões mais industrializadas da Espanha, corresponde a uma hora de trabalho não remunerado[2]. Os catalães como um todo, para manter o bem-estar da própria sociedade, precisam de trabalho remunerado e não remunerado. Noutras palavras, esse fluxo de horas de cuidados, embora contribua para o bem-estar dos seus habitantes, não possui “o mesmo valor” para a economia que a mão-de-obra remunerada do mercado. Além disso, pode afirmar-se que esse trabalho nunca foi tão desacreditado como nas sociedades modernas. As políticas económicas e a ideologia de mercado em que essas políticas se baseiam contribuem para ofuscar o tempo dedicado ao autocuidado, dos descendentes, pais, idosos, amigos, da própria casa, do bairro onde se vive, da cidade ou área rural. No entanto, o tempo e a qualidade do atendimento que prestamos e recebemos podem afetar muito a felicidade que experimentamos[3]. Essa felicidade, de facto, é fortemente condicionada pelo grau de satisfação nos relacionamentos que temos, pelo tempo que passamos com as pessoas que amamos e pelo esforço que dedicamos às atividades que dão sentido às nossas vidas e às de nossos entes queridos[4].
A falta de dignidade atribuída ao trabalho de cuidar é explicada também, ou acima de tudo, porque são principalmente as mulheres que organizam, estruturam e realizam essas atividades que subsidiam invisivelmente a economia de mercado[5]. Isso é confirmado por pesquisas detalhadas sobre o uso do tempo[6]. Não é surpreendente, portanto, que foi sobretudo o pensamento radical feminista[7] que revelou a importância que os tempos de cuidados e reprodução da vida têm para tornar possível a almejada vida que vale a pena ser sustentada. Uma análise que foi enriquecida e ampliada pela abordagem ecofeminista[8].
Também neste caso, acho justo fazer uma análise precisa. Não quero reproduzir uma ideia ingénua da atividade de cuidar que a associa de maneira simplista ao amor e aos bons sentimentos; seria um raciocínio pernicioso em tempos de pandemia. Cuidar é muitas vezes um trabalho duro, de grande sacrifício; dar e receber cuidados pode, em muitos casos, ser odioso, triste, nauseante e destrutivo. Por esse motivo, reivindico uma abordagem do cuidado que nasça da prática e da experiência quotidiana de cuidar, que reconheça e legitime a vida como uma experiência de interdependência e vulnerabilidade, que considere a vida sem dor e livre de todos os tipos de obrigação e sacrifício como uma das promessas ilusórias do mundo capitalista moderno. Uma vida que se dá em casos muito raros e ao custo de exploração, desigualdade e contaminação sistêmica.
A pandemia e o confinamento da covid-19 tornaram visível a importância de cuidar de si e da comunidade. O vírus também aumentou o tempo das atividades de cuidado. Basta pensar no aumento do tempo das atividades de reprodução, nas longas filas criadas para comprar pão e respeitar a distância de segurança, a limpeza repetida das nossas próprias mãos, a lavagem mais frequente das roupas que usamos e os processos de limpeza de tudo (telefones, chaves, óculos, etc.) que pode ter estado em contacto com o coronavírus nas saídas raras para a compra de alimentos e medicamentos. Cuidar dos nossos próprios filhos que ficam confinados em casa 24 horas por dia exige um esforço emocional e físico esgotante. Esforço desproporcional também tendo em conta a falta de atenção dada às crianças na elaboração das políticas de confinamento. De facto, somente após semanas de confinamento, na Itália é discutida a possibilidade de dar permitir às crianças pequenas caminhadas na proximidade das suas casas. Nessas semanas, os pais viram o tempo de cuidar aumentar tendo que lidar com a organização das atividades escolares, educacionais, recreativas, físicas e emocionais dos seus filhos e filhas em isolamento. Isso aumentou o stress dos adultos responsáveis pelo bem-estar da família para níveis muitas vezes inaceitáveis. O stress, paradoxalmente, também é gerado pela atividade virtual bulímica que nos é proposta para manter as famílias ocupadas, para nos divertir enquanto ficamos em casa. Sem mencionar as condições de cuidado de quem fica em casa com pessoas com diversidade funcional e necessidades especiais, o que pode gerar uma gestão ainda mais complexa da vida confinada. Assim como as centenas de milhares de pessoas que atualmente convivem com doentes e portadores de coronavírus não hospitalizados.
Em alguns casos, o trabalho de cuidar para o qual não estamos preparados emocionalmente tem que ser conciliado com o teletrabalho forçado. As dificuldades de conciliação não são menos importantes para todos os trabalhadores da saúde e trabalhadores produtivos que ainda estão em funções e que são forçados durante o dia a realizar as suas atividades remuneradas em condições adversas. Todos os dias são acompanhados pelo medo constante de serem infetados e consequentemente poderem infetar seus entes queridos que os esperam em casa, nos seus locais de confinamento e dos quais mantêm o distanciamento antes de se descontaminarem adequadamente.
É louvável é o esforço que muitos psicólogos estão a fazer para oferecer gratuitamente os seus serviços de ajuda a todos aqueles que conseguem encontrar a força e o tempo para serem acompanhados nesses momentos difíceis. O risco é, de facto, que a condição “forçada” de cuidar a que somos obrigados aumenta, entre outras coisas, o número de atos de violência doméstica contra mulheres e crianças, mesmo em lares que se consideram normalmente seguros. Onde quer que esse risco possa ser evitado, porém, fica claro que essa conciliação do trabalho de cuidados ampliado pela pandemia da covid-19 e do trabalho de mercado que muitos têm de realizar de qualquer maneira, pode afetar negativamente as mulheres. Mulheres que trabalham principalmente em atividades necessárias para a reprodução da sociedade em tempos de pandemia. De facto, na venda de alimentos a retalho, nas atividades de apoio social, nos hospitais, o número de mulheres empregadas frequentemente excede 70% de todos os trabalhadores[9].
Ficar em casa, forçado pelo estado de emergência devido à pandemia da covid-19, tem, portanto, esse duplo resultado: por um lado, mostra a importância de cuidar de um sistema social que coloca a vida no centro; por outro, mostra que colocar a vida no centro, num sistema de mercado que no seu funcionamento normal não tem isso em conta, é insustentável para muitos. Isso amplia o estado de “crise do cuidado”[10] que o feminismo radical denunciou de forma cada vez mais insistente nos últimos anos. A crise de cuidados, ou a crise da reprodução[11], é o resultado de uma pressão que a expansão da economia capitalista exerce sobre as atividades que permitem o sustento da pessoa e dão sentido à vida. Numa economia em constante necessidade de prolongar o tempo de cuidados e reprodução em conflito com os tempos de produção. Os tempos de cuidado são marcados e dependentes dos ritmos dos processos físicos e psíquicos do sono, da fome, do crescimento e do envelhecimento, da gravidez e da doença[12]. O tempo do produtivismo contrasta com o tempo do cuidado, uma vez que está desfasado dos ciclos diários do corpo e do ciclo da vida, é arrancado dos tempos ecológicos das estações, da regeneração, da recuperação dos ecossistemas, do esgotamento dos recursos, da reciclagem e da destruição tóxica da poluição. O tempo de reprodução é o tempo de disponibilidade e dependência, pois é fortemente condicionado pelas necessidades de nutrição, apoio emocional e cuidados num sentido amplo, assim como enraizado na dimensão local[13]. Esse contraste indissolúvel entre a necessidade de expansão capitalista e a reprodução da vida é a razão de sua invisibilidade durante o processo normal de crescimento do capitalismo mundial. Dessensibilizá-lo resulta também na sua exploração tácita graças à aliança do patriarcado e do capital[14].
A pandemia da covid-19 interrompeu o processo normal de crescimento do mercado, desacelerou o processo de exploração e desativou os tempos de produção que convergem precisamente com as necessidades da vida. Os governos que escolheram, queiramos ou não, colocar-se no centro da vida, tiveram que limitar gradualmente as atividades produtivas para conter a expansão do coronavírus. Nestes momentos de incerteza sobre o futuro socioeconómico, um tipo particular de solidariedade foi acionado: cuidar do comum e em comum em tempos de isolamento. Começou-se a cantar nas varandas para expressar a possibilidade e a vontade de se estar juntos, mesmo ficando em casa. Uma ação que moveu milhões de pessoas em todo o mundo e inspirou cantores famosos internacionais a cantar os louvores deste primeiro ato de cuidado coletivo expresso pelos italianos. Em Espanha, assim que o coronavírus se espalhou exponencialmente, os moradores se organizaram-se em bairros e ruas para tornar a vida menos difícil para as pessoas em maior risco e as que já estavam infetadas. Durante dias, eles apoiaram-se mutuamente nas varandas todas as tardes para expressar solidariedade e aplaudir os esforços dos médicos, enfermeiros e voluntários do sistema de saúde. Internacionalmente, foram desenvolvidas colaborações de técnicos, engenheiros e profissionais para desenvolver protótipos, livres de patentes e replicados com impressoras 3D, equipamentos essenciais para lidar com a expansão da covid-19; fizeram-se, em particular, desenhos e diagramas simples de produção de máscaras, viseiras, sistemas de ventilação e oxigenação. O resultado: ficamos em casa, mas organizamo-nos juntos. Os anúncios de multinacionais do comércio via Internet, a que David Harvey chamou “de economia Netflix”, submergem-nos todos os dias com ofertas de serviços semi-gratuitos. Anúncios que parecem imitar a frase que ficou famosa pelos líderes de Gomorra: “não fiques a pensar”. Fique em casa, não se preocupe com nada, aproveite a nossa ajuda contra o tédio, esteja tranquilo que vamos resolver o assunto. A tentativa de tirar proveito do isolamento para nos individualizar ainda mais e logo relançar a competição capitalista é compreensível. Felizmente, porém, nem todos estão a abraçar este convite à indolência; pelo contrário, a maioria se converteu-se um em cidadãos atenciosos e gentis, demonstrando que o cuidado é sempre um processo de compartilhar e agir em conjunto. Por este motivo, uma sociedade que coloca os cuidados no centro é uma sociedade que se reconstrói a partir dos bens comuns.
É verdade que, para que estas atividades de colaboração e solidariedade prevaleçam sobre o interesse e o enriquecimento pessoal, é necessário que as políticas que colocam a vulnerabilidade da vida no centro sejam projetadas e implementadas o mais rapidamente possível. Colocar o cuidado no centro do sistema social é uma questão que os coletivos feministas (e não só) estão a articular para superar a pandemia. O objetivo não é apenas encontrar maneiras de sair da crise; a intenção não é retornar à normalidade do crescimento económico que torna invisíveis e explora as atividades de cuidados e de reprodução, mas sim tornar visível e praticar, na medida do possível e durante a pandemia a sociedade que se deseja concretizar, uma vez superado o risco de pandemia.
Fonte: Comunizar, Chile
Desde o início ficou claro que colocar realmente o cuidado no centro das nossas preocupações também significa ser capaz de criar empatia e dar respostas àqueles que, além do medo do contágio, começam a sofrer o medo gerado pela perda de trabalho e, portanto, de salário; o medo daqueles que não têm poupança e sabem bem que em breve não poderão arcar com as despesas de alimentação, aluguer, hipoteca, eletricidade, gás e tudo o que garante a sobrevivência. Existem muitas políticas que os movimentos sociais na Europa estão a promover; em Espanha, centenas de grupos e organizações sociais promoveram o plano de choque social. Entre as muitas medidas previstas, está um rendimento de quarentena universal e incondicional. Uma hipótese é o rendimento básico de quarentena (ou de emergência) que está a receber amplo apoio, mesmo além dos movimentos sociais que o promovem. E é isso que passo a discutir agora, levando em consideração as questões dos tempos de cuidados e de reprodução referidos acima. Existem principalmente dois processos em andamento. O primeiro pode ser simplificado na ordem judicial: “fique em casa e consuma o que puder isoladamente enquanto a epidemia desaparece e a economia recomeça”; o segundo pode ser definido assim: “Fico em casa, mas tento relançar atividades de solidariedade coletiva que cuidam da vida”. Para o processo de partilha de cuidados emergir vitorioso desta pandemia, a prioridade maior terá que ser dada à implementação de um rendimento básico para todos. Mas este rendimento básico, para expressar todo o seu alcance revolucionário, deve ser definido como rendimento de cuidados. O rendimento do cuidado é de facto o terreno comum a uma miríade das lutas sociais existentes e o instrumento para recompor as peças que agora estão isoladas.
Rendimento de cuidado para uma sociedade que vai além das pandemias (e além do capitalismo)
Falar sobre o rendimento básico pode levar a mal-entendidos. Portanto, é importante definir de que estamos a falar. Para isso, recorro à definição dada pela rede mundial para o rendimento básico: o rendimento básico é uma prestação monetária incondicional (para todos os residentes de uma determinada nação), cujo uso depende inteiramente da escolha de quem a recebe ou de quem tem direito a ela, visando garantir as condições materiais mínimas de existência que permitem uma vida decente. O rendimento básico não deve ser confundido, por exemplo, com o rendimento de cidadania atualmente concedido na Itália; esse é, pelo contrário, um rendimento condicional pertencente à categoria de subsídios estatais que dependem do nível de rendimento de quem o recebe (por exemplo, subsídio para a cantina escolar, subsídio de desemprego de longa duração, subsídios de habitação, subsídios de formação etc.). A condicionalidade é geralmente justificada por tratar-se de um meio de evitar comportamentos parasitários; de facto, acredita-se que a incondicionalidade incentiva a preguiça e a indolência generalizadas, em detrimento daqueles que se esforçam para produzir valor. Não quero negar completamente a validade desta expressão do senso comum, segundo a qual a ociosidade nunca deve ser incentivada, o senso comum hegemônico no mundo contemporâneo – devido a uma ética de trabalho subordinada ao produtivismo e ao crescimento económico insustentável -, mas que tem as suas raízes nas experiências populares dos mais diversos cantos do mundo; penso que é justo anotar que os grandes processos de acumulação de valor na dinâmica do mercado contemporâneo são realizados, de maneira cada vez mais consistente, graças a atividades não remuneradas e fora dos mecanismos contratuais capital-trabalho[15]. Tomemos, por exemplo, o valor gerado pelo WhatsApp ou Airbnb. Muito pelo contrário, a incondicionalidade justifica-se porque evita: o estigma social de receber indevidamente uma remuneração (por exemplo, sendo apelidado de preguiçoso ou parasita por receber o rendimento básico); os processos de burocratização que criam todas as condicionalidades (por exemplo, é preciso demonstrar que não se conseguiu encontrar emprego nos últimos 12 meses, mas que se procurou ativamente); ou a sanção de quem procura complementar o rendimento básico com outro rendimento (por exemplo, ao exceder-se uma certa remuneração, perde-se o direito de receber o rendimento).
Nos últimos anos, as discussões sobre a necessidade ou não de um rendimento básico multiplicaram-se. De facto, existem aqueles que defendem o rendimento básico porque acreditam que o mercado já não garante um salário digno para a maioria da população e / ou que o desenvolvimento da automatização e o uso produtivo da inteligência artificial poderiam marcar o fim do período do trabalho assalariado em massa. Por exemplo, Mark Zuckerberg, o maior acionista e CEO do Facebook, é um defensor do rendimento básico. Ele conhece bem as maravilhas da automatização e da inteligência artificial e sabe como usar dados e informações geradas durante as interações diárias nas redes sociais para acumular valor monetário sem precisar de recorrer ao trabalho assalariado.
Outras discussões assumem um carácter mais filosófico-político e, embora não excluam motivações baseadas em contingências económicas, concentram-se em saber se um rendimento básico universal é justo ou não. As abordagens liberais, republicanas e social-democratas que o justificam invocam o direito social à participação na comunidade política à que pertence, e / ou o direito de gozar de um certo grau de liberdade para viver a vida como quer e à qual atribui significado. Portanto, a o rendimento básico é sustentado por um leque sociopolítico heterogéneo e atravessa classes sociais e posições políticas, mesmo muito distantes entre si. Os liberais mais radicais, digamos os neoliberais, propõem um rendimento básico como uma política adequada para acabar definitivamente com o estado social que se encontra agonizante. As posições liberais mais moderadas, por outro lado, visam simplificar as prestações estatais, dissociando-as do nível de renda rendimento da pessoa que recebe subsídios básicos, mas não têm o objetivo explícito eliminar outros serviços públicos oferecidos pelas agências estatais. Finalmente, as posições republicanas e social-democratas salientam a necessidade de eliminar as desigualdades de rendimento e propriedade, cada vez mais perversas nas sociedades neoliberais contemporâneas, através de um rendimento básico capaz de garantir uma redistribuição mais eficiente e eficaz da riqueza.
Embora estas abordagens sejam claramente diferentes em termos de tradição e objetivos políticos, parece-me importante enfatizar que as posições liberais moderadas e as posições social-democrata e republicana compartilham um ponto fundamental: todas se baseiam, sem dúvida, num direito abstrato ao rendimento básico. O rendimento básico garante o direito de desfrutar de uma vida decente, o direito de ver a ideia de liberdade e sentido realizada. Certamente, é possível discutir as diferentes conceções de liberdade que estão em jogo e concordar que certas visões são mais meritórias que outras em termos da ética a que se referem; isso não significa que a dissidência, quando não entra nos detalhes da viabilidade contabilística do rendimento básico, permanece num plano de legitimidade abstrata que confronta controversamente diferentes ideias de liberdade.
No entanto, abstração não significa falta de pragmatismo. Se os pioneiros e militantes do rendimento básico não tivessem sido pragmáticos, eles não teriam conseguido que o rendimento básico universal se tornasse uma proposta política digna de ser discutida nas várias arenas políticas mundiais. Nos últimos anos, a intensificação de campanhas e a implementação de diferentes projetos-piloto[16] contribuíram, sem dúvida, para tornar o rendimento básico a proposta que recebe o maior consenso entre as muitas políticas adotadas para poder superar a crise epidemiológica da covid-19 e enfrentar a aceleração da crise económica que já vinha a partir de vários lados. Darei apenas alguns exemplos. Na Itália, o rendimento básico de emergência é o eixo da discussão política lançada desde a aprovação do decreto Cura Itália (Cuida Itália) que responde às necessidades sanitárias, familiares e empresariais italianas, postas à prova pela propagação do vírus. A campanha europeia pelo rendimento básico de emergência ultrapassou as 130.000 assinaturas. O senado federal brasileiro aprovou um rendimento básico de emergência para ajudar as famílias de baixo rendimento a enfrentar a crise que a covid-19 está a amplificar. Em Espanha, a necessidade de promover um rendimento básico é amplamente partilhada pelos movimentos sociais; em particular, a rede espanhola para o rendimento básico publica quase diariamente artigos que explicam as razões pelas quais, agora como nunca, é necessário e possível implementar um rendimento básico incondicional, embora inicialmente apenas para superar a quarentena. Num artigo dirigido num tom desafiador ao governo espanhol, algumas das personalidades mais influentes do movimento espanhol para o rendimento básico apontam para o que esta pandemia nos ensina: nenhuma sociedade pode prescindir, mesmo nos momentos mais difíceis, do trabalho de cuidados e que, sem uma declarada intervenção governamental capaz de promover um rendimento básico incondicional, serão as mulheres que pagarão o preço mais alto por esta crise. De facto, os pedidos legítimos de um rendimento básico promovidos por políticos e académicos de alto perfil internacional, ganhariam força e credibilidade se, em vez de recorrer à compaixão por aqueles que não possuem uma rede de proteção para enfrentar a pandemia e a crise económica em curso, conseguissem incorporar a proposta de um rendimento básico universal no pensamento feminista.
Um feminismo radical que coloca o cuidado e a reprodução da vida no centro não pode deixar de reivindicar um rendimento básico num nível estritamente materialista. Os movimentos : “por salários pelo trabalho doméstico” e “pela greve global mundial das mulheres” são conjuntos de redes de feminismo de base que decidiram lançar uma campanha pelo rendimento de cuidado. Uma campanha que quer ser uma resposta subversiva à crise do atual sistema económico, agravada pelo desenvolvimento da pandemia da covid-19. A campanha pelo rendimento do cuidado parte, de facto, de um dado incontestável: existe uma enorme quantidade de trabalhos reprodutivos e de cuidados que contribuem substancialmente para o bem-estar das pessoas em todas as comunidades políticas, quaisquer que sejam as formas organizacionais que elas produzem. Esse trabalho feminizado de reprodução e cuidados é, no atual sistema de mercado capitalista, o pressuposto invisível das atividades produtivas. O rendimento de cuidado tem como objetivo reconhecer a centralidade desse trabalho e remunerar aqueles que, querendo ou não, realizam esse esforço material e psicológico dia após dia. O rendimento de cuidado, embora apresentado como rendimento básico universal, não se baseia, portanto, num direito abstrato à liberdade de levar uma vida decente, nem reivindica parte da riqueza produzida para poder participar livremente do jogo social proposto pela economia de mercado. Ao contrário de outras abordagens (liberais, republicanas ou social-democratas), a abordagem feminista radical não pede um rendimento com base no direito abstrato de levar a vida livremente e digna de ser vivida. Embora não negue a legitimidade desse direito, não reivindica um rendimento para explorar o que se poderia fazer potencialmente uma vez que a satisfação das condições materiais de existência já estaria garantida, mas sim reivindica um rendimento de cuidado para o que é feito diariamente. O problema do estigma é completamente revertido, não peço um subsídio, embora não tenha contribuído para a produção de valor social, mas exijo sim a parte do valor social que geralmente é invisível para que seja mais facilmente apropriada. Os parasitas são aqueles que se apropriam ilegitimamente do valor produzido pelas atividades de cuidados e de reprodução. Por isso, não se trata apenas de uma questão linguística, é para tornar visível a materialidade dos atos de cuidado e de reprodução e a sua distribuição iníqua entre os sexos que é mais correto falar em rendimento de cuidado em vez de rendimento básico.
Esta abordagem está enraizada nas lutas dos movimentos feministas que lançaram a campanha do salário pelo trabalho doméstico no início dos anos 70. Num movimento internacional capaz de tornar visível o papel fundamental do trabalho de cuidados que as mulheres relegadas ao lar eram obrigadas a realizar para manter elevada a produtividade do trabalhador masculino da fábrica[17]. As protagonistas dessa campanha rejeitaram a naturalização das atividades domésticas e do cuidado do trabalhador produtivo masculino como atividades puramente femininas. Pelo contrário, aquele movimento de mulheres lutava para demonstrar que o centro nevrálgico da exploração que dela derivava era a lares[18]. Pedir um salário para o trabalho doméstico era pedir ao capital que pagasse um custo que não poderia pagar, dado o volume de horas de trabalho que a reprodução e os cuidados humanos requerem. Conseguir demonstrar que as atividades de cuidados são inconciliáveis com a expansão da acumulação capitalista e a mercantilização da vida. Foi uma tentativa de colocar o capital em crise, mas, em vez disso, a emancipação das mulheres, através da participação no mercado de trabalho sem uma redistribuição mais equitativa entre os gêneros das atividades de reprodução e de cuidados e diante de uma expansão do capitalismo sem precedentes, gerou essa “crise dos cuidados” que tanto preocupa o feminismo contemporâneo.
A cesta solidária em Nápoles
Créditos da foto: #panarosolidale/Instagram
A crise dos cuidados tornou-se evidente nos tempos da pandemia. A saúde dos mais vulneráveis e a reprodução social tornaram-se inconciliáveis com a produção e o crescimento económico. Esta impossibilidade de conciliação será paga novamente por 99% da população, caso a resposta a esta crise seja a mesma que ocorreu após a “crise financeira” de 2007/2008. Se ficarmos em casa participando acriticamente na expansão da “economia Netflix” que nos traz máscaras, luvas, comida, filmes, educação para os nossos filhos, atividades culturais, teatro e atividades físicas, encontrar-nos-emos no final desta pandemia num mundo ainda mais perverso e inseguro. Por outro lado, se ficarmos em casa, mas participando na construção de atividades coletivas que cuidam do nosso próprio ambiente e das pessoas mais vulneráveis sem fazê-las sentirem-se passivas, nos encontrar-nos-emos num mundo mais forte e capaz de fazer proliferar os bens comuns. Agora que estamos imersos nas nossas atividades diárias de reprodução, podemos aprimorar nossas capacidades de cooperação, de cuidar de nós mesmos e dos nossos entes queridos para acompanhar crianças, idosos e doentes na reapropriação da riqueza social que a eles pertence. Para alcançar este objetivo, devemos lutar para que 99% da população não tema que, no final da epidemia, perca as suas casas e os seus empregos; devemos fazer com que todos possam pagar pela comida, habitação, escola, eletricidade e gás; devemos lembrar que será preciso uma enorme quantidade de apoio psicológico e material para aqueles que tiveram que cerrar os dentes e continuaram a trabalhar na linha de frente, para aqueles que perderam entes queridos a quem não puderam dar uma última saudação, para quem, mesmo que curado, sofrerá consequências a longo prazo para a sua saúde. Para fazer tudo isso, ficamos em casa e queremos que uma um rendimento de cuidado seja instituído. Este representará um grande processo de redistribuição onde quem precisa receberá e quem pode contribuirá.
[1] Excertos extensos relatados aqui são retirados de um texto antigo que escrevi em 2012 juntamente com o meu amigo e colega Federico Demaria para a revista: Quaderni di Sabbia. Anno II, Numero 2.[2] D’Alisa G., Cattaneo C. (2012) Household work and energy consumption: a degrowth perspective. Catalonia’s case study. Journal of Cleaner Production Vol. 38, pp. 71-79.[3] Easterlin, R., The economics of happiness, 2004, Edward Elgar.[4] Kahneman, D., O enigma da experiência contra a memória, 2010, em http://www.ted.com/talks/lang/en/daniel_kahneman_the_riddle_of_experience_vs_memory[5] Jochimsen, M., Knobloch, U. (1997) Making the hidden visible: the importance of caring activities and their principles for an economy. Ecological Economics, 20, p. 107-112.[6] Picchio, A., Decrescita, rendere visibili i costi per le donne. Publicado em 2012 no jornal da Università degli Studi di Padova.[7] Federici S. (2013). Revolución en punto cero. Trabajo domestico, reproducción y luchas feministas. Mapas, traficantes de sueños.[8] Salleh A. (2017) Ecofeminism as politics. Nature, Marx and the postmodern. Zed books. Gregoratti C., Raphael R. (2020). The historical roots of a feminist “Degrowth”. Maria Mies’s and Marilyn Waring’s critique of growth. In Chertkovskaya E. Paulsson A., Barca S. Towards a Political Economy of Degrowth. Rowman &Littlefield.[9] Gostaria de agradecer a Nora Räthzel, Socióloga da Universidade de Umeå, na Suécia, por me ter chamado a atenção para esta informação.[10] Fraser, N. (2017). Crisis of care? On the social-reproductive contradictions of capitalism. In Social Reproduction Theory. Remapping Class, Recentering Oppression, editado por Tithi Bhattacharya, London: Pluto Press[11] Federici S. (2019). Social reproduction theory. History, issues and present challenges. Radical Philosophy 2.04. Disponível online aqui (Ultimo acesso: 30 de março de 2020).[12] Mellor, M. (1997) Women, nature and the social construction of “economic man”, Ecological Economics, 20, p. 129-140.[13] Mellor, M., Relatório apresentado na 3ª Conferência Internacional sobre Decrescimento, Sustentabilidade Ecológica e Equidade Social, realizada em Veneza de 19 a 23 de setembro de 2012. A sua apresentação está disponível online: http://www.sherwood.it/articolo/2016/video-3-conferenza-internazionale-sulla-decrescita[14] Dalla Costa M. and James S. (1971) Women and the subversion of the community. Disponível online aqui (Ultimo accesso: 30 March 2020).[15] Chicchi F., Leonardi E. in press. Rethinking Basic Income. Radical Philosophy.[16] Standing G. (2017) Basic Income: and how we can make it happen. Penguin books.[17] James S. (2012) Sex, Race and Class – the Perspective of Winning: a selection of writings 1952–2011, PM Press.[18] As reflexões seguintes e as contribuições do ecofeminismo mostraram como os lugares invisibilizados do trabalho não remunerado se estendem aos espaços da agricultura de subsistência, aos ecossistemas dos territórios das colónias e das populações indígenas.Este texto foi originalmente publicado em 20 de abril de 2020 num blog italiano (aqui a versão original). A versão portuguesa que acabou de ler foi fruto do esforço coletivo de tradução de Layza da Rocha Soares, Teresa Meira, Lilian Oliveira, Maria Neves, Hans Eickhoff e Álvaro Fonseca. A todas e todos o nosso agradecimento.