Imagem @Bojan Mrđenović
A Semana de Decrescimento em Zagreb começou com a 4ªAssembleia Internacional de Decrescimento em que participei inicialmente online, nos quilómetros finais da minha viagem de Zurique para Zagreb no comboio noturno Nightjet dos Caminhos de Ferro Austríacos (ÖBB). Mas ainda cheguei a tempo ao Centro Cultural Ribjnak de Zagreb, rodeado de um grande parque, após uma curta viagem de elétrico a partir da estação central Glavni Kolodvor, para assistir a uma sessão de aprendizagem sobre sociocracia, dinamizada por François Schneider. Aproveitou-se o resto do dia para discutir vários aspetos da proposta apresentada pelo Coletivo Aberto para a Organização de uma Rede de Decrescimento (ODN Open Collective), tanto em plenário como em diferentes grupos de trabalho. No fim, a proposta (que deve ser entendida como uma base para o trabalho futuro) foi aprovada pelas organizações representadas na assembleia e pelos participantes a título individual, num total de quase 100 pessoas, tendo ficado escolhidas as pessoas encarregadas de organizar os encontros dos círculos continentais e temáticos para dar seguimento à constituição da Rede Internacional.
No dia seguinte, começou a conferência propriamente dita no Museu de Arte Contemporânea de Zagreb, com palavras de abertura de Jelena Puđak e Mladen Domazet, da Comissão Organizadora local, de Vincent Liegey e Alexandra Köves, do Grupo de Suporte, e do Presidente da Câmara Municipal de Zagreb, Tomislav Tomašević, e dos vice-presidentes Danijela Dolenec e Luka Korlaet, um trio surpreendentemente próximo do Decrescimento.
Seguiu-se a palestra inaugural de Diana Ürge-Vorsatz, recentemente eleita Vice-Presidente do IPCC (Painel Intergovernamental para as alterações climáticas), que se confessou nervosa por não ser – ainda – decrescentista e estar a falar perante um auditório cheio de decrescentistas (na realidade, já tinha sido co-autora deste artigo, com Jason Hickel, Giorgios Kallis, e outras). Assim, durante a sua intervenção foi demolidora quanto à (im)possibilidade de perseguir taxas de crescimento de 3% (que nos deixariam com um crescimento de 1000% no fim do século), identificando o crescimento económico exponencial como causa principal da crise climática e da ultrapassagem dos limites planetários. Referiu ainda que, em 2023, vários indicadores climáticos já excediam qualquer valor de referência recente, como, por exemplo, a temperatura de superfície dos oceanos ou as (reduzidas) camadas de gelo polar. Também criticou, tanto quanto possível, a fixação do IPCC em incluir absurdas quantidades de captação e armazenagem de carbono nos seus cálculos de emissões zero (net zero), impossíveis de atingir em grande escala, mas servindo de desculpa à indústria fóssil, aos governos e ao sistema económico no seu todo, para continuar a emitir gases com efeito de estufa como se nada fosse.
Depois a Conferência mudou-se para o Centro de Congressos da Feira de Zagreb, também na Avenida Dubrovnik, e as coisas começaram a intensificar-se num turbilhão de centenas de palestras e workshops, organizadas a volta de temas centrais como Política Climática Transformadora, Tecnologia e Ciência para o Decrescimento, Decrescimento como Projeto Político?, Economias Alternativas, Ecologias Feministas, Decoloniais, Anti-racistas e Contra a Discriminação de Pessoas com Diversidade Funcional, só para referir alguns.
A fazer escolhas em relação à vasta oferta de sessões, acabei por seguir as intervenções sobre decolonização, feminismo e relações com o Sul global, a par dos assuntos ligadas à saúde (participei aqui com duas pequenas apresentações, uma delas em coautoria com Graça Rojão). A inspiração na crítica de Illich esteve sempre presente, desde a Coreia do Sul (através de Do Yeon Lee, investigadora da Escola de Saúde Pública de Universidade Nacional de Seoul), até à Itália (por parte de Jean-Louis Aillon, do Movimento per la Decrescita Felice), com interessantes conversas sobre o conceito de saúde numa perspetiva decrescentista, a saúde como bem comum, e a agenda por uma saúde planetária.
O riquíssimo programa estava divido em palestras principais, sessões com envolvimento de organizações políticas e sessões paralelas, académicas e não académicas, muitas delas a decorrer em compartimentos improvisadas no afamado Pavilhão 8, cuja esterilidade (operacional) ficou embelezada pelos 240 m2 de paneis de restos de tecido fornecidas pela URIHO Zagreb, uma instituição pela reabilitação e pelo emprego de pessoas com diversidade funcional. Mas todo o improviso devido aos recursos financeiros limitados não impediu debates acesos e inspiradores, num belo espírito de comunidade entre as pessoas participantes. Só tive pena não ter podido participar em mais sessões mas o tempo não dá para tudo, infelizmente.
Num workshop interativo sobre o significado do decrescimento no Sul global, dinamizado por Donna Andrews, Suzall Timm e Daniel Chaves, foi possível conhecer as práticas e lutas das guardiãs das sementes da Rural Women’s Assembly (RWA), ativa em sete países da África Austral, num exercício que procurava ultrapassar a divisão epistemológica entre sessões académicas e não-académicas, dando conta de um projeto de investigação feminista e não-extrativista liderada por ativistas da RWA. Na sua palestra magistral sobre decrescimento numa periferia africana, Roland Ngam dissecou a colonização por mensagens culturais hegemónicas incessantes que servem para cooptar um número suficiente de pessoas para se juntarem à corrida impossível para o topo da matriz do consumismo, realçando que capitalismo hegemónico é simultaneamente criador e consequência da exploração brutal de corpos negros, castanhos e brancos, das costas das mulheres, da natureza e dos bens comuns de que todas as pessoas deveríam usufruir por igual.
Na mesma senda, a incontornável Françoise Vergès reclamou o direito a respirar como ato revolucionário na luta decolonial, feminista, queer, antirracista, pró-indígena, anti-capitalista, anti-imperialista e internacionalista. À noite, num evento paralelo a decorrer na Associação Croata de Artistas que precedeu a abertura da exposição “Planet, People, Care-It Spells Degrowth!“, ela ainda apresentou a edição croata do seu livre “Um Feminismo decolonial” (publicado em Portugal pela Orfeu Negro), salientado que a luta feminista teria de ser sempre revolucionária e decolonial dado as mulheres não existirem enquanto sujeito político porque a revindicação da universalidade do movimento emancipatório feminista europeu de cariz civilizacional não questiona o sistema de exploração do trabalho das mulheres racializadas.
Naturalmente, a 9ª Conferência Internacional de Decrescimento não foi apenas um local de aprendizagem e de partilha, foi também um local de encontro e reencontro, permitindo reatar a conversa com Nick Fitzpatrick, investigador do CENSE da NOVA Universidade de Lisboa, com Morena Hanbury Lemos, participante online em vários eventos do Núcleo de Lisboa e agora investigadora sediada na Universidade Autónoma de Barcelona, e com Giacomo d’Alisa, amigo de longa data da Rede para o Decrescimento e antigo investigador do CES em Coimbra, agora de volta à UAB), para não falar das inúmeras pessoas que conheci de novo, algumas já notórias pela sua intervenção no debate público e académico, outras nem por isso.
Depois de 3 dias intensos e entusiasmantes na Feira de Zagreb, a Conferência voltou ao centro da cidade, decorrendo o último dia no já conhecido Centro Cultural Ribjnak. Depois de mais um dia de debates e de sessões interativas, algumas em conjunto com fundações políticas como a Friedrich-Ebert-Stiftung e a European Green Foundation, houve um momento de convívio com música ao vivo.
Mas a 9ª Conferência Internacional de Decrescimento não se podia despedir de Zagreb sem um caloroso agradecimento à equipa organizadora e aos voluntários que tornaram o evento possível, com um até já em 2024, na Galiza, onde a 10ª Conferência Internacional de Decrescimento irá decorrer de 18 – 21 de junho, organizada em conjunto com a Sociedade Europeia de Economia Ecológica e a Universidade de Vigo. Uma oportunidade verdadeiramente especial e única para uma imersão decrescentista!
PS: Viajar para assistir a um encontro internacional de decrescimento significa viajar devagar. Com algum esforço, é possível chegar a Zagreb a partir de Lisboa, utilizando camionetas e comboios, em menos de 48 horas, infelizmente desde março de 2020 sem poder utilizar a ligação ferroviária noturna de Lisboa a Hendaye, entretanto suspensa (por favor, apoiem a sua reposição aqui!). De automóvel, bastariam umas 30 horas, para vencer uma distância inferior a 3.000 km, num percurso mais direto pelo Norte da Itália, em vez do desvio para Paris a que a companhia ferroviária francesa SNCF nos obriga inevitavelmente. De avião, símbolo da “reificação alienante” de uma civilização industrial que teima em colonizar o nosso imaginário seriam apenas 6 horas. No entanto, e tendo em conta não apenas o terrível impacte climático e ambiental da aviação mas querendo recuperar a vida lenta e viajar com os pés na Terra, a minha viagem foi o compromisso possível na aproximação a uma mobilidade mais humana, substituindo a perceção que a distância precisa de ser vencida por formas de viajar que permitam conhecer em vez de vencer.