Este texto surgiu a partir de um exercício coletivo dos autores, desenvolvido no círculo "Decrescimento e Habitação", e representa uma primeira reflexão sobre o tema. Não pretende ser mais do que um "pontapé de saída" para que se possa aprofundar o debate no futuro.
Photo by Nikko Balanial on Unsplash
A par da alimentação e do vestuário, a habitação faz parte das necessidades humanas básicas cuja satisfação é indispensável para a sobrevivência. O atual sistema socioeconómico capitalista, baseado no mercado, na expansão e no crescimento exponencial infinito, está a atingir os seus limites e já não consegue assegurar o direito básico a uma casa, mesmo nas sociedades do Norte global. Assim, a atual “crise da habitação” em Portugal é sintoma de um sistema que precisa de mercadorizar tudo para se sustentar, incluindo a Natureza. Assente numa prática de dominação, torna os bens essenciais transacionáveis nos mercados internacionais e a habitação uma mercadoria de difícil acesso para a maioria da população.
Ao mesmo tempo, a organização e o tipo de habitação caraterísticas da civilização industrial avançada criam soluções urbanísticas baseadas na dispersão e no aumento das distâncias, enquanto o modelo unifamiliar das casas e moradias não só contribui para o individualismo e o isolamento, como também reproduz uma ordem social em que as tarefas de cuidado são remetidas para o privado e invisibilizadas, sendo avessa a soluções coletivas que, aliás, são ativamente combatidas.
Perante esse panorama, uma abordagem decrescentista da crise habitacional deverá dar resposta aos problemas mais prementes da situação atual sem, contudo, agravar os impactes ambientais associados à construção nova, e, ao mesmo tempo, desenhar propostas para o futuro, utopias reais, que terão de envolver questões sociais e ambientais, numa perspetiva convivial e de baixo insumo tecnológico, e que permitirão transpor as dinâmicas do modelo atual. Sendo a habitação um ponto de intersecção relativamente a fluxos de materiais e energia, de justiça ecológica e de descolonização do imaginário, torna-se central para o Decrescimento:
O fluxo de materiais e energia terá de adequar-se à necessidade planetária de relocalizar as atividades humanas, reduzindo a necessidade de deslocações (consumo de energia) e de infraestruturas para essas deslocações (consumo de materiais). Ao mesmo tempo, exige-se a priorização da readaptação de estruturas existentes, em oposição à expansão urbana sobre áreas verdes (agrícolas ou reservas biológicas), fazendo uso de materiais locais e renováveis, técnicas passivas de conforto e salubridade, e de tecnologias para a redução do consumo de água e energia.
A justiça ecológica refere-se à necessidade humana e não-humana de um habitat, de um ecossistema favorável à realização das expetativas biológicas e sociais de indivíduos e grupos. Assim, quando se recriam espaços naturais para os outros seres vivos (rewilding), também é preciso recriar os espaços de cidadania e sociabilidade que foram erodidos pelas grandes concentrações urbanas, dependentes de excessivos meios técnicos ou, ao contrário, pelo despovoamento e desautonomização das pequenas cidades.
A descolonização do imaginário está relacionada com a resistência a padrões culturais e de consumo impostos por modelos patriarcais, individualistas e produtivistas. A habitação decrescentista não tem de ser unifamiliar, não precisa de ser propriedade privada ou estatal, não é necessariamente uma casa. As exigências de habitação podem estar relacionadas com a procura de outras formas de viver (cohousing, caravanas), outras tecnologias (apropriadas e acessíveis), outras formas de produção (autoconstrução e autogestão), e outras formas de viver na cidade (nomadismo).
A habitação pode ser um meio de promoção da coexistência (com limites e padrões estabelecidos autonomamente), em substituição da inclusão num modelo universalista ocidental (estabelecido tecnocraticamente). Assim, não é apenas importante discutir o que se deve fazer, mas como se decide o que fazer. A habitação é mais do que uma necessidade básica pois vivemos em sociedade. A habitação é uma questão política no sentido de decisão coletiva para o bem comum. A procura de habitação é a procura pelo espaço político da habitação, ou seja, por mais instrumentos de decisão participados e representativos da diversidade social.
Photo by Edward Moss on Unsplash
13 propostas de políticas públicas decrescentistas para a Habitação
Desmercantilização e igualdade
Acabar com o rentismo: aumentar a tributação sobre rendas e propriedade de imóveis (à exceção da primeira habitação);
Abolir a financeirização: extinguir os Fundos de Investimento Imobiliário;
Reduzir a desigualdade do acesso à propriedade: expropriação de habitação em propriedade de bancos ou grandes empresas e transferência para a propriedade coletiva, do estado ou de cooperativas (exemplo: movimentos em Berlim);
Limitar os alojamentos locais: permitir apenas o uso contíguo à própria habitação em zonas centrais das cidades e limitar a um imóvel por proprietário em zonas periféricas para democratizar o acesso a este setor da economia e evitar a destruição do tecido social;
Sustentabilidade e relocalização
Reduzir as distâncias e aumentar a proximidade da produção e da reprodução (habitação, trabalho / ocupação, alimentação, cultura, natureza): vincular novos edifícios comerciais à oferta de habitação com a mesma área construída na mesma zona, tornar compulsiva a agricultura urbana em terrenos desocupados, implementar a cidade de 15 minutos, expropriar e renaturalizar áreas periurbanas;
Fomentar a descentralização: instituir moedas locais para reter a riqueza na periferia e implementar serviços itinerantes para reduzir a dependência dos grandes centros urbanos;
Aumentar a habitação social e comunitária: expropriação e conversão de edifícios comerciais para fins de habitação nas zonas centrais das cidades (em alternativa a mais transporte);
Photo by Marsela Sulku on Unsplash
Comunidade e convivialidade
Aumentar a cooperação: facilitar a propriedade ou direito de uso de terra e imóveis devolutos por cooperativas habitacionais;
Fomentar a convivialidade: priorizar o uso de técnicas construtivas de fácil aprendizagem e apropriação e materiais disponíveis localmente (reutilizados, reciclados ou cultivados), evitando a extração de recursos naturais e a deslocação de materiais;
Apostar na comunização: incentivar a partilha de equipamentos habitacionais como, por exemplo, cozinhas coletivas, lavandarias coletivas, espaços coletivos de trabalho com partilha de Internet, acesso coletivo à televisão, biblioteca de coisas (utensílios, ferramentas, eletrodomésticos);
Valorizar o cuidado: redução do trabalho semanal remunerado para implementar períodos de trabalhos comunitários e reorganização coletiva do cuidado;
Democracia e autonomia
Incrementar a deliberação democrática participativa: instituir foros permanentes de “minipúblico” a nível local e nacional, introduzir processos deliberativos nas consultas públicas e referendos, tornando as decisões vinculativas;
Apostar na autogestão: apoiar a estruturação de modelos replicáveis de produção e gestão de habitação cooperativa em propriedade coletiva.