A ausência de visão e de consistência das propostas, aliadas à falta de democraticidade, não é apenas um problema deste plano ou deste Governo. É o reflexo de um sistema forçado a pensar sempre, primeiro e sobretudo no inquestionável crescimento do PIB. Na opinião da Rede para o Decrescimento, o resumo do Plano de Recuperação e Resiliência colocado em "consulta pública” pelo curtíssimo período de 15 dias que, de acordo com o primeiro-ministro será apresentado ao fim de outros oito dias, não cumpre, de todo, o objetivo de criar uma visão estratégica para “um futuro mais robusto, mais coeso e mais sustentável” para o país.
Tendo na sua génese a chamada “Visão estratégica para o plano de recuperação económica de Portugal 2020-2030”, de António Costa Silva, membro (não eleito) da elite político-económica e fortemente ligado ao sector da indústria fóssil, seria, à partida, difícil de imaginar que rompesse com um sistema que nos conduziu à grave crise ambiental e social em que nos encontramos. Um sistema moribundo, assente num consumo energético e material impossível de sustentar; que produz lixo, poluentes e gases com efeito de estufa em quantidades insustentáveis, fazendo apenas sentido para a acumulação infinita de capital. Um sistema que acabará por destruir o tecido sócio-económico, aumentando sempre e ainda mais o fosso entre os mais pobres e os mais ricos. Esta crise sistémica é muito maior e mais grave que a crise de liquidez que a Europa tenta superar com as suas “bazucas” milionárias tornadas “vitaminas”. Assim, a “visão” do plano não é, de todo, visionária.
Na mesma linha, e apesar das expetativas criadas à sua volta, o conteúdo do plano acaba por ser mais do mesmo, com considerações ecológicas irrealistas e contraditórias. Esventrar o fundo do mar e das montanhas em busca de mais materiais para se fazerem mais coisas, com tecnologias cada vez mais sofisticadas e mais energia supostamente verde, para vender mais, exportar mais, crescer mais. Mais, mais, mais. Ao mesmo tempo quer-se a modernização e o crescimento da agroindústria: já são 80.000 hectares de olival e amendoal intensivo ou super-intensivo só no Alqueva cujas implicações ambientais nefastas já estão identificadas, enquanto os benefícios são apenas para alguns. Considera-se o lítio um material pro-ecológico e o motor de hidrogénio o próximo sonho, remédios para todos os males. Tudo acompanhado por uma gritante desconsideração pelas populações. São cada vez mais as localidades alarmadas pela chegada deste “Plano” às suas terras, com a destruição iminente que o continuado extrativismo acarreta (Braga, Serra da Estrela, Serra d’Arga, Montalegre, Bajouca, Serra de Argemela, entre outros). Mais preocupado com o lucro de poucos e com o crescimento (cego) do PIB, o plano quer abrir portas aos silicon valleys de lítio, que promoverão o arrasar de territórios e populações e transformarão parte do país em “zonas de sacrifício”.
Infelizmente, a chamada “participação cidadã” fica reduzida a um mero exercício de estilo quando se promove uma consulta pública que apenas permite agregar comentários no extenso resumo de 147 páginas que remete para um documento muito maior, tudo num prazo de 15 dias. É lícito poder esperar que esses comentários sejam lidos, quanto mais considerados e incorporados, quando o documento final vai ser apresentado uma semana depois? Temos o dever de reclamar e exigir mais e diferente! Já existem inúmeros processos de participação cidadã inclusiva, por sorteio facilitados, e com estruturas de apoio claras. São processos experimentados e aplicados noutros países europeus como, por exemplo, recentemente em França. Por cá, há petições a propor processos semelhantes. Mas será preciso coragem política e visão para as aplicar, além de humildade na partilha do poder de decisão.
No entanto, há ideias novas, emergentes, e alternativas que poderiam já começar a ser desenvolvidas coletivamente, experimentadas e testadas. Muitas são ideias “decrescentistas”, para lá da destrutiva lógica inerente do sistema sócio-económico atual. São aplicáveis em vários sectores e níveis de governação, tanto rurais como urbanos. Ideias alimentadas por uma visão societal viva que, longe da comunicação social mainstream e dos palcos político-partidários, vai avançando e experimentando o aprofundamento democrático que empodera a população através do municipalismo e das assembleias cidadãs, bem como a desurbanização e a aposta no desenvolvimento rural, aliadas à educação e à capacitação para ocupações úteis, com uma pegada ecológica reduzida, resgatando saberes antigos. Será preciso investir mais em tecnologias low-tech que necessitam de menos energia e material restabelecer os comuns, dando acesso à terra e à habitação, promovendo a regeneração ativa dos ecossistemas, a plantação de agroflorestas, e a libertação dos sistemas agrícolas do jugo da indústria agroalimentar. Em vez da aposta em projetos centralizados, a autonomia energética local deve ser desenvolvida.
Estas propostas não alinhadas com o dogma do crescimento e da acumulação infinita de capital são exequíveis e estão a ser implementadas no terreno, sem grande pompa e circunstância. Ninguém quer voltar à época pré-industrial. Trata-se precisamente do contrário: é preciso avançar para a época pós-industrial, pensando e desenhando coletivamente o abandono planeado do crescimento económico - muito diferente das ruturas previsíveis do sistema atual que se materializam durante crises e recessões.
A ausência de visão e de consistência das propostas, aliadas à falta de democraticidade, não é apenas um problema deste plano ou deste Governo, nem um problema de corrupção ou de desconfiança na população. É o reflexo de um sistema forçado a pensar sempre, primeiro e sobretudo no inquestionável crescimento do PIB, mesmo quando já foi demonstrado que não serve para medir o bem-estar de uma sociedade. Prevê-se um futuro conturbado e com grandes desafios a nível nacional e global, com disrupções comparáveis ou maiores do que aquelas que sofremos com a pandemia de covid-19. Num mundo fortemente interconectado e interdependente, a devastação ecológica e ambiental, as crises económicas e financeiras que se aproximam, os desequilíbrios geopolíticos, e a instabilidade social e a injustiça ambiental entre Norte e Sul Globais vão afetar as enormes cadeias de produção e distribuição de que dependemos para manter este sistema cada vez mais frágil a funcionar Não estamos nem preparados, nem a preparar-nos para o que aí vem. A mudança é possível e há propostas no terreno. Temos de decidir se queremos continuar agarrad@s a um passado que não voltará mais, ou trabalhar e sonhar para encontrar soluções diferentes que possam criar um verdadeiro bem-estar para tod@s, dentro dos limites biofísicos do planeta.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico
Pela Rede para o Decrescimento:
Guilherme Serôdio e Hans Eickhoff
Com contributos de:
Alcides Barbosa, Álvaro Fonseca, Ana Poças Ribeiro, Luís Camacho, Sofia Paredes
Texto publicado aqui (site do jornal Público, 3 Março 2021)