É icónico, se não fosse tão preocupante, o texto de Ricardo Reis sobre o decrescimento económico. Ao contrário do que o autor afirma, num texto que não serve para nada senão tentar assustar-nos para que mantenhamos tudo na mesma, o decrescimento não é uma “apologia de pobreza”, não é “nacionalista”, não “defende a opressão”, não é “abusivo” e não é “assassino”(!?). De facto, a violência do ataque às propostas decrescentistas é sinal, não apenas do desconhecimento profundo das mesmas, mas também da fragilidade da posição assumida pelo Ricardo. Da parte da Rede para o Decrescimento em Portugal, orgulhamo-nos de ter trazido o Decrescimento ao discurso público, onde já está a ser levado tão a sério que obriga a uma defesa desesperada do sistema atual que dispara em todas as direções.
O conceito de decrescimento é bastante recente, pelo que é normal haver confusão sobre o mesmo. Não obstante, o recurso ao medo, mesmo que devido à ignorância, não é nada construtivo. Claro que pensar fora do sistema em que estamos imersos é desafiante mas se decidirmos fazer esse exercício as propostas decrescentistas acabam por ser fáceis de perceber e conceber como potencialmente válidas, pelo que vamos expor aqui os principais conceitos, brevemente e em resposta às sugestões (erradas) do artigo.
Vamos por partes:
Este é o primeiro ponto verdadeiramente importante do decrescimento. CLARO que há uma relação, e direta, entre este tipo de desenvolvimento económico (i.e. baseado no consumo desenfreado de materiais e energia, no consumismo das nossas sociedades, na produção em massa, no marketing, e na obsessão com o crescimento económico a todo o custo), e os prejuízos ambientais. O primeiro erro (logo na primeira frase) do Ricardo, é contar apenas as emissões feitas dentro dos países desenvolvidos. Esquece a produção de tudo quanto é importado, mais o seu transporte, embalagem, etc. Ou seja, o “desenvolvimento económico” do Ricardo engloba tudo o que faz parte da nossa vida; já “os prejuízos ambientais” contabiliza apenas aqueles emitidos e sentidos em Portugal. É essa a falácia, já amplamente estudada, da tal curva de Kuznets que o Ricardo tenta recuperar para a sua argumentação. É a tal mesma lógica que leva a que os acordos do clima não resultem em nada, mesmo depois de anos e anos de negociações e alertas, com todos os indicadores globais a piorar. E só mesmo nesta lógica tão conveniente ao argumento do Ricardo poderia o desenvolvimento das nossas sociedades não estar a impactar os equilíbrios biofísicos do globo.
Mas está, e é fácil de observar, e perceber porquê. O problema é que a nossa maneira de viver nos mantém reféns de gigantes cadeias de extração, poluição, produção, transformação, transporte e disposição (de lixo), que se estendem por todo o mundo, sendo na sua grande maioria (85%) movidas a combustíveis fósseis. E estas cadeias têm como objetivo principal o aumento dos lucros da produção de bens que delas dependem. Ou seja, quando uma empresa consegue um avanço tecnológico que permita produzir um produto usando menos recursos ou energia - prometendo portanto um produto “mais sustentável” - consegue o que procurava: atingir uma maior fatia de mercado. Lógica esta que leva a que, claro, venda MAIS produtos, necessitando assim de mais materiais e energia no total - não menos, como quer acreditar o Ricardo.
Assim, o decrescimento não procura “condenar o desenvolvimento económico para salvar o ambiente”, mas sim repensar o que se entende por desenvolvimento económico.
Não, Ricardo. O decrescimento não propõe “abraçar a pobreza, o nacionalismo e a opressão”. O que o decrescimento convida é a repensar as nossas noções de riqueza, refletir sobre os impactos de uma globalização tão destruidora como a atual, e a refletirmos, coletivamente e por via de métodos democráticos aprofundados e já em prática em tantos lugares, na nossa noção de limites. Porque esta gestão de sociedade em que o fim (o crescimento económico exponencial) justifica todos os meios (emissão de CO2 desenfreada, desflorestação, abertura de minas a céu aberto, plastificação dos oceanos, pesca abusiva, mesmo forçarmos uma extinção em massa - a 6a do planeta), não é possível.
Por isso, discordamos profundamente do Ricardo: termos noção de limites não é “opressão”. Concordaremos, por exemplo, que dentro das localidades não se poder circular a 200km/h não é opressão. É bom senso. E é o bom senso que queremos convidar para a reflexão societal que estamos obrigados a fazer neste importante momento da história da humanidade. E não Ricardo, o contrário de uma riqueza materialista como a que nos impingem com marketings e artigos como o seu de “não há outra alternativa”, não é pobreza. O que o decrescimento propõe é encontrar riquezas reais, e fazer delas os nossos objetivos enquanto sociedade: ter tempo, ter contato com a natureza, comer bem e local, ter empregos com significado, partilhar e ajudar, viver em comunidades de confiança, apostar em tecnologias sóbrias e replicáveis, regenerar o ambiente, recuperar e desenvolver saberes, abraçar moedas locais, etc etc. Pobreza é não conseguir ver para além do que nos impõem como "única via”. Pobreza é pensarmos que estamos no fim da história, e que sem um crescimento económico predador e destruidor como aquele em que vivemos não pode haver sociedade humana. E não Ricardo, uma economia que incentive uma produção local, ecológica e regenerativa, que aposte na reparação e reutilização, e em vidas de baixo impacto ambiental (contando, claro com a produção e não apenas consumo de produtos) não é “nacionalismo”. É sobriedade, e é vontade de fazer conjunto mas com os pés na terra, a acreditar em nós e nos outros, e na imensa potencialidade humana para resolver problemas e inventar soluções e futuros, dentro -claro- dos limites biofísicos dos ecossistemas.
Vale também a pena recordar o paradoxo de Easterlin que demonstra que o crescimento económico está associado à felicidade, mas só até certo ponto - a partir do qual deixa de haver correlação. Temos o exemplo da Costa Rica, com menos de um quarto do PIB per capita de muitos países ocidentais mas sempre no topo da lista de países com mais bem-estar.
Ou seja, o decrescimento é sobretudo voltado para a necessidade das economias industriais do Norte Global decrescerem. E quer evitar a todo o custo continuar a repetir as abordagens das aventuras colonialistas e neo-colonialistas (essas sim, assassinas e coercivas) de exportar visões ocidentais para o resto do mundo. Há, claro, sociedades e milhões de pessoas que necessitam de algum crescimento económico, e queremos continuar a dialogar com elas para que adotem modelos para lá do materialismo e do crescentismo que nos está a levar a todos a um abismo. Já há muitas ideias e abordagens, algumas em que nos inspiramos também para reinventar o nosso mundo: buen-vivir, justiça ambiental, zapatismo, municipalismo, feminismo, justiça social, etc. Vale a pena descobrir.
Ricardo, a contradição da cegueira tecno-industrial aqui é tanta que nem sabemos por onde começar. A urbanização, o aumento da densidade populacional e a construção em altura é a antítese de uma “melhoria ambiental considerável”. As cidades modernas, com os seus milhões de habitantes, necessitam de fluxos gigantescos e contínuos de energia e materiais que nela se dissipam: fluxos de alimentos, gasolina, eletricidade, lixo, desperdício, concentração, cimento e infraestrutura. É um bom reflexo da falta de noção que permeia o artigo do Ricardo.
Por outro lado, e segundo dados da Oxfam, o estilo de vida dos 10% da população mais rica representa 52% das emissões de carbono, sendo que os 50% da população mais pobre são responsáveis por apenas 7%. Ou seja, considerar o crescimento populacional como causa principal dos problemas ecológicos é, tal como no caso da curva de Kuznets, mais uma forma injusta de dizer que o problema é dos outros, ou de todos por igual - quando o problema é mesmo a obsessão pelo crescimento económico que tudo parece justificar.
Para concluir: O decrescimento não é apologista da pobreza, mas de uma sobriedade plena, e de uma riqueza mais real e menos financeiro-económica. Reconhece que este tipo de “riqueza” que hipnotiza hoje toda a nossa sociedade é só para alguns, à custa de uma grande maioria, e inviabilizando mesmo a sobrevivência de tanta vida no mundo - e as nossas sociedades.
Sim, o decrescimento é uma abordagem inovadora, e por isso terá sempre aqueles que a temem e lhe arranjam papões. Mas não é nem assassina, nem opressora, nem nacionalista, nem neo-colonialista. O decrescimento é, sim, baseado numa crença em comunidades fortes e abertas ao exterior, em economias locais e reais, na preservação e regeneração dos ecossistemas como bases funcionais de uma nova economia. É uma proposta baseada nos incentivos a uma transição de paradigma, acreditando nas pessoas e na sua capacidade de encontrarem soluções e sentidos para a sua vida sem que para isso tenham de viver dependentes de um sistema que causa tanta destruição e miséria pelo mundo.
O decrescimento avança um projeto de sociedade alternativo, positivo, baseado numa outra forma de viver e de se organizar coletivamente. Muito do que isso significa ainda está por definir, e de propósito. O que o decrescimento propõe é a organização de uma grande conversa social, utilizando práticas já testadas de democracia deliberativa e horizontal. Uma conversa onde sejamos capazes de nos encontrar, deliberar e decidir coletivamente o que realmente queremos e temos de manter, e o que temos forçosamente de abandonar.
Democracia, sobriedade, pés na terra, e uma noção de limites acordados por tod@s é a antítese do que o Ricardo pensa que o decrescimento significa. Já não podemos pensar como o Ricardo, e medrosamente fechar portas a tudo o que é diferente. O (novo) mundo precisa de ti, das ideias de tod@s, e de um pensamento coletivo e livre.
Nota: Enquanto estavamos a realizar esta resposta Viriato Soromenho Marques, que foi visado no artigo de opinião também respondeu ao mesmo no seu site.