O Decrescimento em Portugal: A Necessidade de Demolir um Paradigma
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O Decrescimento em Portugal: A Necessidade de Demolir um Paradigma

Uma versão adaptada deste texto foi publicada pela edição portuguesa do jornal Le Monde Diplomatique em abril de 2023.
O Decrescimento em Portugal: A Necessidade de Demolir um Paradigma

Photo by Taton Moïse on Unsplash

A discussão sobre alternativas a um sistema social e económico preso ao crescimento exponencial está vibrante e intensifica-se por toda a parte. Com a participação de decrescentistas como Jason Hickel e Giorgos Kallis e de economistas críticos do paradigma atual como Tim Jackson (autor de Prosperidade sem Crescimento), o Parlamento Europeu vai dar palco, em maio deste ano, a uma conferência sob o lema “Beyond Growth” [1], coorganizada por 20 deputadas e deputados de 5 grupos parlamentares diferentes, entre elas a deputada portuguesa Marisa Matias. Em março, Jason Hickel falou ao Parlamento holandês no âmbito de uma iniciativa para criar um grupo de trabalho parlamentar sobre Decrescimento. Também na Holanda, o manifesto por uma “Nova Economia Já![2] que exige o abandono do modelo de crescimento económico é apoiado por mais de 100 organizações, incluindo dois bancos nacionais e o Concelho das Igrejas da Holanda. Países como o Canadá, a Escócia, a Finlândia, a Islândia, a Nova Zelândia e o País de Gales fazem parte de uma Parceria de Governo por uma Economia do Bem-Estar [3] que visa olhar explicitamente para além do crescimento económico. No Japão, o livro do filósofo Kohei Saito “Capital in the Anthropocene” [4] vendeu mais de meio milhão de cópias desde o seu lançamento em 2020, advogando que apenas o Decrescimento seria capaz de reparar a destruição planetária provocada pelo capitalismo e a sua busca de lucros ilimitados. Na Alemanha, em 2022, a economista Ulrike Herrmann publicou uma apologia ao Decrescimento, delineando estratégias para o “Fim do Capitalismo” (título original: Das Ende des Kapitalismus) [5], dada a manifesta incompatibilidade entre crescimento e o combate à crise climática. Surpreendentemente, há meses que o livro se encontra no topo da lista das publicações mais vendidas sobre temáticas económicas da conceituada revista Der Spiegel. No entanto, em Portugal, o Decrescimento ainda está estranhamente ausente do debate público e, quando muito, é objeto do editorial ou artigo de opinião ocasional a condenar e ridicularizar liminarmente as suas propostas.

O Decrescimento em Portugal

Em 2012, no rescaldo da crise financeira e em pleno período de austeridade arquitetada pela troika e pelo Governo de Passos Coelho, o economista e decrescentista francês Serge Latouche, autor do Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno passou por Lisboa para uma conferência na Fundação Gulbenkian seguida de um seminário no Centro de Recursos do CIDAC, com participação de alguns membros da atual Rede para o Decrescimento em Portugal, como Álvaro Fonseca ou Pascale Millecamps. Contudo, e apesar do sucesso das Conferências Internacionais de Decrescimento que se começaram a realizar bienalmente a partir de 2008 (Paris, Barcelona, Veneza, Leipzig, Budapest, etc.) foi preciso esperar até 2018 para que o movimento português tomasse forma. Por coincidência ou não, foi nesse ano que a Sempre-Em-Pé publicou a tradução portuguesa de cinco ensaios de Ivan Illich, teólogo, filósofo e investigador social de origem Vienense, e grande inspirador do Decrescimento com as suas teses sobre a convivialidade e a feroz crítica da alienação pela civilização industrial. Cinquenta anos depois da publicação original em inglês, o fascículo com o título “Para uma História das Necessidades“ [6] poderia condensar-se, nas palavras do seu editor, no lema “superar a pobreza moderna”. Complementando esse raciocínio, no prefácio do livro, Jorge Leandro Rosa salientou que a “história do Ocidente parece ter estado sempre […] sob o signo da expansão da necessidade". Nesse mesmo ano, dando voz a uma crítica de expansão semelhante, constitui-se a Rede para o Decrescimentoem Portugal, inspirando-se no movimento galego “Rede para o Decrecemento  Eo-Navia Galiza O Bierzo”, cujos membros Miguel Anxo Abraira e Iolanda Teijeiro Rey participaram em dois eventos no Porto, no Espaço Gazua e no Gato Vadio, em julho de 2018. Assim, no seu primeiro comunicado, a 25 de Julho de 2018, a então incipiente rede portuguesa enunciou as grandes linhas da sua crítica das sociedades atuais que se encontrariam “capturadas pelo produtivismo, pelo sexismo e pela destruição dos territórios e das culturas autóctones”, tendo proposto criar “um espaço de apoio mútuo, uma rede de partilhas e um vislumbre das formas como poderemos construir as experiências de resiliência futuras”.

Decorridos pouco mais de quatro anos sobre o seu lançamento, a Rede para o Decrescimento está ativa e procura desenvolver-se através de vários núcleos territoriais e círculos temáticos, participando no debate público através de artigos de opinião, debates, seminários, pareceres sobre iniciativas legais e por meio da sua página de internet [7] que reflete muito dessa atividade. Em 2022 organizou, em colaboração com a Rede de Bibliotecas de Lisboa, um ciclo de nove eventos (cada um deles dedicado a diferentes tópicos, desde o sistema alimentar à saúde) por ocasião dos 50 anos da publicação do relatório ao Clube de Roma “Os Limites ao Crescimento” (Limits to Growth na versão original), sob o lema “Crescer até Rebentar?”, salientando a sua relevância na análise da presente crise global que é tanto ecológica como social. Assim, na sua intervenção no evento inaugural do ciclo, Giacomo d’Alisa, investigador do CES da Universidade de Coimbra e da Universidade Autónoma de Barcelona, contrapôs os limites que deveriam balizar a ação humana num planeta finito à atual “economia de cowboy” que procuraria constantemente ultrapassar as fronteiras, inclusivamente as planetárias, destruindo assim o equilíbrio dos ecossistemas terrestres e agravando a injustiça social e ambiental.

Ultrapassar os limites

Na visão da Rede para o Decrescimento, tornou-se impossível ignorar as manifestações ominipresentes da transgressão de limites também em Portugal: a nível do território, a nível climático e a nível social. Mais de 25% da área “florestal” do país consiste em monoculturas de eucalipto e outros 20,4% de pinheiro-bravo, enquanto a agricultura industrial abrange mais de um quarto do território. Vastas áreas do Centro e Norte de Portugal continental estão marcadas para a mineração. O cordão dunar da costa portuguesa está entregue à exploração turística. Em 2022, 97% do território nacional encontrava-se em seca extrema e as reservas de água diminuíram vertiginosamente perante os planos para multiplicar as áreas de regadio industrial de explorações superintensivas de oliveira, amendoeira, abacates, e laranja, entre outras. Mas as zonas de sacrifício não atingem apenas as zonas rurais: a turistificação do território faz-se acompanhar de projetos de expansão aeroportuária no meio da crise climática. O consumo de energia primária ainda depende em 70% de combustíveis fósseis, e isto sem ter em conta a energia incorporada em produtos importados. O estado dos aquíferos de água doce, rios e ribeiros, é lamentável. A reciclagem cria a falsa ilusão de reaproveitamento e abrange apenas 21% daquilo que laboriosamente se separa. A extinção de espécies no território nacional progride inabalada. E a crise ambiental faz-se acompanhar de uma crise social sem fim à vista: desde o endividamento pessoal e coletivo à consequente crise da impagável dívida externa, da inflação galopante ao impacto nas famílias, no acesso à habitação e aos bens essenciais, das crises do Serviço Nacional de Saúde à crise do sistema do sistema educativo. De acordo com o movimento social e académico do Decrescimento, todas as crises têm na sua origem um sistema socioeconómico que assenta num crescimento exponencial e contínuo do produto interno bruto (PIB), com taxas de duplicação em apenas 35 anos, ou menos [8], criando uma visão distópica sobre a vida, humana e não-humana num planeta finito.

O Decrescimento não é recessão nem austeridade

Atualmente, num momento em que a crise climática e ecológica se associa a uma crise do custo de vida, a proposta de “decrescer” ou reduzir parece pouco apelativa, sobretudo para quem sofre com o aumento de preços e tem dificuldade de fazer face às despesas essenciais, pagar a renda ou a prestação da casa, a alimentação ou o aquecimento no Inverno, patente na origem do movimento pela Vida Justa. Perante a acusação de que o Decrescimento significaria precisamente mais recessão e austeridade ou, até o regresso às cavernas, Sofia Paredes, membro do Núcleo de Lisboa da Rede para o Decrescimento, responde com a necessidade de desmistificar mal-entendidos e distorções intencionais das propostas decrescentistas que seriam incompatíveis com o regresso à época pré-industrial. Realça que, antes pelo contrário, o Decrescimento propõe avançar para a época pós-industrial, desenhando coletivamente o abandono planeado de um sistema económico assente no crescimento perpétuo que, por sua vez, é caracterizado por ruturas que se materializam durante crises e recessões que este não consegue resolver, como a pandemia, a guerra, ou as disrupções da cadeia global de abastecimento. Em vez de recomendar a austeridade, o objetivo declarado do Decrescimento é aumentar o bem-estar e a felicidade enquanto se reduz a pegada económica e, consequentemente, a pegada ecológica, deixando de pilhar os recursos do planeta e começando a partilhá-los de uma forma mais justa e equilibrada para permitir a regeneração desses mesmos recursos.

Encontro Nacional 2023 @Rede para o Decrescimento

Propostas da Rede para o Decrescimento

Contrariando a perceção de que o Decrescimento apenas promove ideários utópicos inalcançáveis ou a mudança individual do estilo de vida, no seu parecer relativamente às propostas da Lei de Bases do Clima, a Rede para o Decrescimento procurou estabelecer metas concretas que desafiassem a lógica instalada: Assim, até 2030, deveria ocorrer uma transição energética e ecológica face ao rápido aumento da temperatura média global que teria de visar a urgente redução das emissões de GEE, a ampliação dos sumidouros naturais e a regeneração da biodiversidade. Num horizonte até 2040, a transição teria de ser económica e territorial, tendo em conta a iminente catástrofe climática e a comprovada fragilidade da economia globalizada, e criar uma autonomia (nacional, regional e local) para a segurança alimentar, energética e da produção de bens e serviços básicos, minimizando ao mesmo tempo a pegada ecológica. Finalmente, até 2050, a transição teria de progredir para ser social e política, face à previsível necessidade de evolução institucional, promovendo a reorganização das forças produtivas para um modo de produção sustentável, independentes de crescimento e da competição internacional), com novos mecanismos de organização política e coesão social.

Na sua intervenção política e social, a Rede para o Decrescimento tem vindo a opor-se a todos os megaprojetos e infraestruturas extrativistas que considera destrutivos da vida humana e não humana, desde a construção de novos aeroportos ou a expansão de aeroportos existentes aos projetos de mineração que ameaçam o interior Norte e Centro do país. Faz parte da campanha ATERRA pela redução do tráfego aéreo e por uma mobilidade justa e ecológica e participa através dos seus membros no movimento Minas Não que, tal como a Rede para o Decrescimento, recusa um modelo de desenvolvimento que assente na destruição da Natureza e das comunidades nela integradas.

O projeto da Rede para o Decrescimento encontra-se em permanente construção, não representando um sistema hermenêutico de soluções pré-definidas, apoiando-se na relação com a Natureza, com o conhecimento, com as culturas e com o outro. Salientamos que se trata de um processo que exige compromisso e coragem, tornando necessário romper com hábitos e dogmas do passado e promovendo uma mudança necessária de paradigma, para impedir a progressão da catástrofe ambiental e criar soluções que permitam viver dentro dos limites da capacidade do planeta Terra, num espírito participativo e convivial. A contra-sociedade decrescentista construir-se-á a partir das bases e através de uma participação cidadã radicalmente democrática. Assim, a Rede para o Decrescimento foi desenhada em torno de conceitos decrescentistas, permitindo tempo e descanso a quem nela participa, descentralizando decisões e poder, mas incentivando, promovendo e celebrando iniciativas de todo o tipo. A sua Orgânica Interna está pensada para incentivar autonomia, experimentações e colaborações, utilizando mecanismos de transparência e gestão financeira inovadores como o Open Collective. Não existem hierarquias e o círculo de gestão e coordenação é escolhido por recurso à tiragem à sorte, com mandatos rotativos e curtos, numa abordagem radicalmente democrática.

O Decrescimento veio para ficar

Em 2021, o decrescentista francês Vicent Liegey fez nas páginas deste jornal (nota: Le Monde Diplomatique) o “Elogio do Decrescimento[9] reclamando a descolonização do imaginário da sociedade de crescimento para nos emanciparmos com a ambição de colocar a abundância onde a miséria alastra e a frugalidade onde os excessos proliferam, numa alusão à obra de Jean-Baptiste de Foucauld. Agora, em 2023, a discussão sobre uma sociedade para lá do crescimento e as mudanças sistémicas necessárias para fazer vingar a proposta decrescentista começam a ganhar tração pela Europa fora. Em Portugal, a conversa ainda tarda a chegar ao debate público e os deputados à Assembleia da República preferem, para já, evitar falar da necessidade de uma transformação radical e decrescentista, ouvindo-se ainda os habituais discursos sobre o aumento do PIB e o crescimento a todo o custo. Perante a perspetiva do “Fim do Capitalismo”, título do livro de Herrmann que defende que esse acontecerá de qualquer maneira, ou de forma planeada ou por via de um colapso progressivo do modelo vigente, a Rede para o Decrescimento está apostada no debate do futuro decrescentista. Depois do ciclo sobre os Limites ao Crescimento que decorreu em 2022, encontra-se agora a promover uma série de debates com coletivos transformadores que começou na Fábrica de Alternativas, em Algés, e passou pela Cooperativa Rizoma, em Lisboa. Novas iniciativas a nível nacional serão debatidas na próxima Reunião Geral, a ter lugar em Coimbra, em Abril. O debate sobre Decrescimento só agora começou…



[[1]]  https://www.beyond-growth-2023.eu/

[[2]]  https://platformdse.org/manifest-nieuwe-economie-nu/

[[3]]  https://wellbeingeconomy.org/wego

[[4]]  Kohei Saito, Capital in the Anthropocene (Japanese: 人新世の「資本論」: Hitoshinsei no "Shihonron"), Shueisha, 2020

[[5]]  Ulrike Herrmann, Das Ende des Kapitalismus, Kiepenhauer & Witsch, 2022

[[6]]  Edições Sempre-Em-Pé, 2018, editado por José Carlos Costa Marques e com prefácio de Jorge Leandro Rosa.

[[7]]  https://www.decrescimento.pt/

[[8]]  Taxas de crescimento de 2% por ano correspondem a uma duplicação em 35 anos. Com 4% de crescimento anual, a duplicação se atinge após 18 anos.

[[9]]  Vicent Ligey, Propostas para sair do consumismo desenfreado: Elogio do Decrescimento, Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa, Outubro 2021

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