Texto de Pedro Costa a propósito do passadiço elevado do Parque de Serralves (Porto), inaugurado em Setembro de 2019, que se insere numa crítica mais ampla à recente vaga mercantilista e massificadora do chamado ‘turismo de natureza’ que se tem traduzido numa artificialização crescente dos territórios naturais.
“Queridos amigos, tomei a liberdade de aqui vir dar a minha opinião sobre as sugestões de caminhadas na natureza que têm vindo a mencionar e cujos destinos se evidenciaram devido às recentes arrojadas infraestruturas construídas, que até fizeram notícias nos meios de comunicação internacionais.”
Assim iniciei o meu monólogo, sem nunca ter enviado aos supostos destinatários o que se me ia no pensamento e acabando por chegar à seguinte conclusão: mas afinal, haverá lugar para a minha opinião sendo ela contraditória à esmagadora maioria das pessoas? Quão marginal seria o texto, espelho do meu ser? Passo então a reflectir o que vejo quando se me deparo com as seguintes intervenções nas ditas paisagens naturais.
“Treetop walk” Serralves e a recente construção do passadiço nas copas das árvores é um excelente exemplo de como o modelo de capitalização dos recursos naturais - o arvoredo - é sobreexplorado de forma a atrair e extrair do público algo mais. A colonização da espécie humana desse minguado lugar, retirou às belas árvores ali existentes a harmonia de estarem sós entre elas, mas também a qualidade do seu habitat – privacidade, tranquilidade e segurança - onde as aves e outra fauna residem. Fico desconcertado quando leio o comboio de palavras fantasmas a seu respeito (página web da Fundação de Serralves) e passo a transcrever: “A implementação (…), terá forte impacto ao nível da sensibilização ambiental e do respeito pela conservação da natureza, património natural e na comunidade científica, a nível nacional e internacional.”; “Identificado como estrategicamente relevante, (…) que permite uma experiência impactante de observação e estudo da Biodiversidade do Parque de Serralves”…
Cerro os olhos e revejo as selvas tropicais e o acesso que semelhantes infraestruturas permitem, não só aos biólogos, mas também aos ecoturistas, possibilitando a observação da fauna e flora que, doutra forma, muito dificilmente teriam oportunidade pois muitos desses seres vivem unicamente nos seus inacessíveis distintos patamares do dossel - nichos ecológicos. É incomparável a utilidade que semelhantes infraestruturas proporcionam nesses respectivos espaços. No contexto tropical, uma passarela ao nível da copas das árvores (que poderão estar a cerca de 30 metros acima do solo) e/ou uma torre de observação emergente sobre a copa do mar de árvores na floresta tropical, onde os estratos vegetais sucedem-se em altura impossibilitando até o vislumbre do céu para quem em baixo se encontra, nos permite aceder a um novo mundo. No exemplo do parque de Serralves, o seu passadiço permite-nos unicamente ver com outra perspectiva o mesmo cenário que do solo se avista. A maior grandeza do Treetop walk Serralves é a hipérbole desenhada pela equipa de marketing do parque de Serralves.
E descendo em altura, mas ainda com os pés não assentes em terra, passamos a caminhar e a consumir novas sensações desta vez nas passarelas, pontes e passadiços, teleféricos, elevadores, miradouros e outras quantas construções expansionistas de que já todos ouvimos falar e que passaram a (des)compor muitas paisagens naturais do nosso país. A título de exemplo:
“Os Passadiços do Paiva (…) proporcionam um passeio "intocado", rodeado de paisagens de beleza ímpar, num autêntico santuário natural, junto a descidas de águas bravas, cristais de quartzo e espécies em extinção na Europa. (…) Uma viagem (…) que ficará, com certeza, no coração, na alma e na mente de qualquer apaixonado pela natureza.” (página web dos Passadiços do Paiva).
Fico agora não só de olho franzido mas também boquiaberto com esta desmesurada descrição e logo transporto-me para o mundo da fantasia e vejo Bambi e Tambor dançando a valsa no grande ecrã do antigo cinema da Trindade; esfrego os olhos, abro-os e deparo-me agora com exércitos de eucaliptos pelo homem plantados a encurralarem os resquícios de vegetação autóctone já no limite, à borda-d’água, e estremeço sentindo o tentacular passadiço-polvo com os seus braços estranguladores a envolverem o moribundo belo – as fragas e o caminho do rio. Fecho os olhos e antevejo multidões de ávidos crentes consumidores de emoções em linha no guiché da caixa registadora. Escreve a socióloga Eva Illouz:
"A noção de experiência como produto, tal como o turismo e o entretenimento, mostra que se trata de produtos intangíveis que transformam o consumidor num objecto sobre o qual actuam; de facto, uma dinâmica crucial da expansão do capitalismo tem sido a de alargar a experiência como produto e o que compramos já não é uma mercadoria/produto fora de nós mas, pelo contrário, somos nós próprios que nos consumimos tendo uma certa experiência emocional e, assim, tornamo-nos os coprodutores do produto que consumimos" (Progressive International).
Todo este mundo “Made by Man” proporciona uma fotografia nova, mais um outro prazer instantâneo e instagrameo de natureza fácil, de fácil acesso, de preferência fisicamente e psicologicamente pouco exigente, umas vezes gratuito - o novo ordenamento político e socioeconómico (ou “tecno-feudalismo”, para usar o termo cunhado por Yannis Varoufakis) não contabiliza, tal como o transmutado capitalismo, o impacto negativo que intrinsecamente gera ao agir/existir - outras não, mas sempre concebido sobre pressupostos claros de extração, exploração e expansão. O acesso a esses lugares deverá naturalmente ser como um passeio à beira mar, na calçada asfaltada, ou uma ida ao shopping-center ou à baixa da cidade de automóvel. A Natureza deverá estar ao serviço do Homem, das massas; compartimentada, etiquetada, pronta a consumir, de boutique, prêt-à-porter.
…”a maior ponte pedonal suspensa do Mundo,”… “Eu nos passadiços! Cansado mas feliz!” “Desfrute de uma natureza em estado puro.” Observe a biodiversidade do local, com espécies em vias de extinção na Europa.” (página web dos Passadiços do Paiva)
Can't take your slogans no more
Can't take your slogans no more
Can't take your slogans no more
Can't take your slogans no more
Wipe out the paintings of slogans
All over the streets (ooh, ooh, ooh)
(letra da canção ‘Slogans’ de Bob Marley)
Naturalista de coração e sempre que possível de profissão procuro passar o meu tempo de vida entre boas companhias – gorilas de costas prateadas, peixes bico de papagaio, araras de barba azul, tartarugas couro ou sagradas sumaúmas. E entre o passado e o futuro periclitante, eu tento existir no presente; no único tempo realmente existente.
Imagem da ponte é de autoria Bex Walton