@Graça Rojão | Pintura de Francisco Vidal, Bienal de Vila Nova de Cerveira, 2023
O termo ecofeminismo terá sido utilizado pela primeira vez em 1974 por Françoise d‘Eaubonne no seu livro Le Féminisme ou la Mort, ligando o feminismo à ecologia para destacar o potencial transformador de uma revolução que seria simultaneamente ecológica e capaz de dar corpo a novas relações de género, bem como entre humanos e natureza. Quatro anos mais tarde, D’Eaubonne fundou em França o movimento Ecologia e Feminismo. No entendimento de D’Eaubonne, o domínio masculino sobre os corpos femininos e as suas funções reprodutivas arruinara tanto a humanidade quanto as bases da vida na Terra, associando a opressão das mulheres à opressão da Natureza, sendo que a sobrepopulação a nível mundial estaria indissociavelmente ligada à falta de liberdade das mulheres para exercerem os seus direitos reprodutivos.
Em 1993, no seu livro Ecofeminism, Maria Mies e Vandana Shiva salientam que o termo ecofeminismo apenas se tornara verdadeiramente popular durante os protestos contra os recorrentes desastres e a destruição ambiental no fim dos anos 1970 e no início dos anos 1980, como, por exemplo, o acidente nuclear em Three Mile Island nos EUA que acabou por mobilizar muitas mulheres para o primeiro congresso ecofeminista que teve lugar em março de 1980, em Massachusetts, sob o lema “Mulheres e Vida na Terra”. Nesses protestos, as mulheres denunciaram a ligação entre tecnologia, a obsessão pelo crescimento do sistema industrial baseado no lucro e a exploração do Sul global (Mies & Shiva, 1993:15). Sobretudo Shiva considera que todo o conceito de desenvolvimento e da agricultura industrial é um processo liminarmente patriarcal que desapropria as mulheres da sua ligação vernacular com a terra e o solo, retirando-lhes autonomia e capacidade de subsistência.
Com base na noção da subsistência e do vernacular, no sentido Illichiano, Bennholdt-Thomsen (2014) propõe que o ecofeminismo possa contribuir para uma transição decrescentista, opondo-se à mercadorização e à subversão da agricultura local numa parte da economia capitalista de mercado. Tornar-se-ia indispensável desconstruir o mito que a subsistência equivale ao subdesenvolvimento e combater o mantra das políticas de desenvolvimento que representaria nada mais do que uma nova forma de colonialismo.
Reconhecendo a necessidade de descolonização nas relações com o Sul global das propostas decrescentistas, Dengler e Seebacher (2019) reclamam uma abordagem feminista deste processo. Partindo da insustentabilidade ambiental e social do modo imperial de viver do Norte global, esta perspetiva feminista do Decrescimento assenta no objetivo de justiça sócio-ecológica global para criar pontes com movimentos pela justiça ambiental no Sul global. Num texto para a primeira edição do Degrowth Journal (2023), o coletivo de redação da Aliança de Feminismos e Decrescimento (FaDA na sigla inglesa) sublinhou três estratégias essenciais:
1. Aplicar a compreensão das dinâmicas históricas dos sistemas de género para desafiar as economias políticas orientadas para o crescimento;
2. Apoiar a diversidade de vozes, conhecimentos e práticas como recursos vitais para reforçar o pensamento e a ação decrescentistas;
3. Desaprender as políticas convencionais de conhecimento e ação, gerando novos entendimentos e aplicações através da intervenção epistemológica feminista.
Mas enquanto estas estratégias permanecem algo teóricas e pouco concretas, a economista e ecofeminista espanhola Amaia Pérez Orozco (2022) identificou, de forma assertiva, a atual crise multidimensional como eminentemente civilizacional porque deriva do fracasso do projeto de modernidade capitalista, heteropatriarcal e racista. Assim, o circuito retro-alimentado do colapso ecológico em aceleração permanente apenas poderia ser interrompido através do decrescimento metabólico dos sistemas socioeconómicos. Citando Herrero (2010), Pérez Orozco sublinha a irresolúvel e radical tensão entre capitalismo e a manutenção da vida humana e ecológica, afirmando que o conflito não decorre apenas entre trabalho remunerado e outros tipos de trabalho, mas também com a vida em si, com tudo que vive, tornando-se ecocida em última consequência. A este estado de coisas, contrapõe a noção de buen convivir, de uma boa vida coletiva, distanciando-se de propostas individualistas de felicidade.
Analisando as diferentes visões sobre o ecofeminismo, seguindo a proposta de Flores e Trevizan (2015), estas agrupam-se em torno de três correntes distintas: (1) clássica; (2) espiritualista; e (3) construtivista. A corrente clássica “vê no homem uma predisposição natural para a competição e a destruição, e a sua obsessão pelo poder leva-o a guerras suicidas, ao envenenamento e à destruição do planeta, enquanto a ética feminina de proteção dos seres vivos se opõe a essa agressão, procurando a igualdade, o pacifismo e a conservação da natureza” (Flores & Trevizan, 2015:13-14). A corrente espiritualista defende que “o desenvolvimento tem gerado um processo de violência contra a mulher e o meio ambiente, e luta contra a dominação, o sexismo, o racismo, o elitismo e o antropocentrismo, atribuindo à mulher uma tendência protetora da natureza” (2015:14) e, por fim, a corrente construtivista que, “embora não se identifique com as duas primeiras, partilha com elas ideias antirracistas, antiantropocêntricas e anti-imperialistas, negando, porém, a relação da mulher com a natureza como uma característica intrínseca do sexo feminino, mas sim da responsabilidade de género resultante da divisão social do trabalho, da distribuição do poder e da propriedade” (Flores & Trevizan, 2015:14).
A necessidade de se esclarecerem os conceitos-chave associados ao ecofeminismo e de se distinguirem posicionamentos agrupados sob o mesmo rótulo é evidente. Plumwood (1986) divide o ecofeminismo em três grupos: (1) aqueles que localizam o problema para as mulheres e para a natureza nos dualismos que têm origem na filosofia clássica; (2) aqueles que localizam o problema tanto para as mulheres quanto para a natureza na ascensão da ciência mecanicista; e (3) os que oferecem uma explicação com base na formação ou consciência de personalidade sexualmente diferenciada.
O ecofeminismo crítico proposto por Puleo assume uma posição muito distinta, na medida em que “crítico” significa, neste contexto, “o compromisso com o cumprimento das promessas de liberdade, igualdade e solidariedade do Iluminismo e a sua relação com os novos desafios do milénio” (2017:29). Pressupor que as mulheres têm uma capacidade distinta de se relacionarem com a natureza seria regressar ao estereótipo do anjo do lar, transfigurado agora em anjo do ecossistema, e colocar sobre as mulheres a responsabilidade de serem as salvadoras de um planeta em perigo (Puleo, 2012: 29).
Contrapondo às visões cultural e espiritual uma perspetiva ecofeminista que enfatiza a corporeidade da existência humana, Mellor (2000) afirma que os seres humanos habitam um corpo sexuado que faz parte do mundo natural, estabelecendo uma relação entre as estruturas da desigualdade e a destruição da natureza. Assim, o ecofeminismo baseia-se numa premissa fundamental: nas culturas patriarcais, o direito que permite aos homens explorar a natureza tem paralelo com a exploração das mulheres. A corrente ecofeminista crítica contesta o androcentrismo enraizado na bipolarização dos papéis sociais de mulheres e homens, e destaca que na organização patriarcal as atitudes de afeto e compaixão relacionadas com as tarefas do cuidado, assumidas predominantemente pelas mulheres, sofreram uma forte desvalorização (Puleo, 2017). A defesa de um feminismo ecológico terá de promover uma educação para o cuidado, capaz de superar a divisão de papéis sociais marcada pelas categorias de género socialmente construídas e contrariar as relações de poder patriarcal que remetem as mulheres para a esfera doméstica e do cuidado, com uma suposta sacralização das virtudes que lhes seriam inerentes. Puleo estabelece como palavras de ordem para o ecofeminismo crítico: liberdade, igualdade e sustentabilidade.
Nesta linha de pensamento, Horstink, Fernandes e Campos (2020) destacam a impossibilidade de construção de uma teoria e de uma prática revolucionárias se as mulheres e a natureza continuarem a ser entendidas como objetos e não como sujeitos. Sublinham a necessidade de reconhecer a origem comum das crises sociais e ecológicas, sendo a crise ambiental indissociável do capitalismo, o que se traduz na rejeição das propostas do capitalismo verde, que “pretendem resgatar o capitalismo da crise em que mergulhou, estancando as crises sociais, económicas e ecológicas que provocou, sem alterar os princípios estruturantes do capitalismo neoliberal – como a acumulação capitalista, e a proteção do lucro e da propriedade privada” (Horstink et al., 2020:13). Assim, as mulheres são equiparadas à natureza e, tal como esta, são exploradas pelo sistema capitalista através do trabalho não pago que é o alicerce fundamental da atual reprodução social.
Deste modo, o metabolismo social gerado pela modernidade “considera as forças de produção (ciência e tecnologia industrial) como o principal fator de progresso e bem-estar, ao mesmo tempo que considera a reprodução (tanto humana quanto não-humana) um instrumento passivo para a produção e a expansão infinita do Produto Interno Bruto” (Barca, 2020:26). Ou seja, equipara a Terra e o trabalho de cuidado a recursos passíveis de apropriação, que devem ser mantidos tão baratos e eficientes quanto for possível. Nesse sentido, a modernização ecológica deve “colocar a reprodução no centro da economia política, libertando-a da sua posição subordinada e instrumental em relação à produção” (Barca 2020:26).
A sustentabilidade da vida humana e não humana
As crises e as contradições do capitalismo não se cingem à esfera estritamente económica, dizem também respeito às suas relações com a natureza, com a reprodução social e com a política. Estas funcionam como “moradas ocultas” da economia capitalista porque “fornecem as condições de possibilidade das quais ela não pode prescindir para garantir a sua própria reprodução e expansão” (Fraser, 2017:162).
Se numa fase inicial a economia feminista estava muito focada na problemática do trabalho doméstico, foi ganhando relevo a discussão em torno da ideia mais abrangente de sustentabilidade da vida, considerando que o capitalismo patriarcal está em permanente conflito com a vida humana e com a vida não humana para garantir a reprodução social, não conseguindo assegurar a sustentabilidade humana, social e ecológica, como se torna evidente na atual crise sistémica (Pérez Orozco, 2006; Carrasco, 2018). O conflito que se trava entre o capital e a vida é agravado pelo facto de o sistema capitalista negar a vulnerabilidade dos seres humanos (Atienza et al., 2019), quando “somos interdependentes, uma vez que precisamos do cuidado das outras pessoas e somos ecodependentes, porque para respirar, comer, beber, habitar e, em última análise, viver, dependemos da natureza” (Atienza et al., 2019:10). Reconhecer a ecodependência é assumir que também somos natureza. Não é possível pensar a sustentabilidade da vida humana sem pensar na relação com a natureza e no respeito pelos seus processos.
A grave crise ecológica que enfrentamos aliada às lutas feministas, resultantes da consciência crescente das mulheres face à desigualdade e às relações de subordinação que têm persistido historicamente, ainda que em contextos muito diversos, estão na base da reivindicação de um rendimento de cuidado, lançado em 2020 pela Global Women’s Strike, que assenta na necessidade de valorizar a nível simbólico e monetário o trabalho de cuidado que já é feito: "Esse trabalho feminizado de reprodução e cuidados é, no atual sistema de mercado capitalista, o pressuposto invisível das atividades produtivas. O rendimento de cuidado tem como objetivo reconhecer a centralidade desse trabalho e remunerar aqueles que, querendo ou não, realizam esse esforço material e psicológico dia após dia" (D’Alisa, 2020, s/n).
Este rendimento de cuidado é distinto do rendimento básico incondicional e não o pretende substituir. Surge no âmbito da pandemia COVID-19 e propõe a criação de um rendimento para as pessoas que cuidam de outras pessoas, do meio ambiente urbano e rural, e do mundo natural. Tem em conta que não é apenas o trabalho ligado à reprodução social que está desvinculado do seu valor monetário, mas também todo o esforço colocado no cuidado com os ecossistemas é desvalorizado, considerando que uma parte significativa desse trabalho não pode obter compensação através do preço de venda dos produtos. A título de exemplo, destaque para o significativo trabalho implicado na pequena agricultura familiar, que envolve a manutenção dos solos e da água, a preservação de sementes e de variedades endógenas, bem como a manutenção de zonas agroflorestais com os respetivos benefícios, nomeadamente ecológicos.
Trata-se de um trabalho que tem uma essência não-capitalista e face ao qual importa reconhecer que resulta num serviço que beneficia toda a sociedade. A partir da noção de dívida incorporada, Barca sublinha que “a agricultura de subsistência, assim como o cuidado de ambientes urbanos e rurais, são formas de trabalho reprodutivo não remunerado que complementam o trabalho doméstico, providenciando as condições de produção”. Assim, o trabalho em questão poderia ser designado por reprodução ambiental, pois consiste “[n]o trabalho de ajustar a natureza não-humana à reprodução humana ao mesmo tempo que a protege da exploração e assegura as condições para a reprodução da própria natureza em prol das necessidades de gerações presentes e futuras” (Barca, 2020:37).
Não obstante a preocupação crescente em torno da sustentabilidade da vida, o peso das visões hegemónicas que colocam os interesses particulares do mercado no centro das prioridades coletivas e a sua aliança com as visões patriarcais e antropocêntricas na relação entre humanos e não-humanos, potenciadas por um analfabetismo ecológico e biológico das maiorias sociais, favoreceram um consenso acrítico face às propostas de progresso e do crescimento económico contínuo. Com efeito, "a cultura ocidental, imposta violentamente ao resto do mundo, apresenta um importante defeito de origem: ter suposto que a nossa espécie, a sua cultura, era superior e estava separada do resto do mundo vivo. Contrariamente ao que continuam a defender os povos originários, acreditámos que as pessoas podiam viver acima dos limites da natureza e à margem da vulnerabilidade que comporta ter corpos contingentes e finitos" (Herrero, 2017: 215).
É perante contextos crescentes de conflitos, de demagogias, de exploração e de desigualdades várias que importa promover um exercício coletivo de diálogo crítico, mobilizando diversas epistemologias e mundividências, porque não existe decrescimento sem ecofeminismo!
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