PREFÁCIO, por Jorge Farelo
Na perspectiva da Rede para o Decrescimento, este interessante artigo de José Centeio (editor do jornal digital 7Margens) de 25 Fevereiro de 2023, é bastante oportuno, porque alerta para uma realidade assaz dramática. Sendo emblemática do nosso estilo de vida, remete desde logo para interrogações sobre como criar uma sociedade de abundância frugal, nos termos equacionados por Serge Latouche. Os factos e os dados falam por si. Teremos de desmontar as mentiras e os mitos do crescimento, veiculados por uma publicidade conspícua e irresponsável. A permanecerem as práticas da Fast Fashion e a não haver redução dos consumos, iremos aceleradamente para um colapso, engolidos pelo lixo e sem água. Em contraponto temos de praticar uma nova arte de viver, pautada pelos valores decrescentistas. Conseguiremos?
Sobre os problemas ambientais, as alterações climáticas, bem como os riscos da transição para as ditas energias limpas, tem o 7MARGENS, em diversos momentos, sublinhado e chamado a atenção para determinados aspetos: Energias limpas: solução ou ilusão?; Os jovens explorados e mortos no Congo para que possamos ter telemóveis e computadores; Crescimento ou Decrescimento, eis a questão; Europa: um Pacto Ecológico para inglês ver?; Mineração: Por uma aposta muito limitada e responsável (análise).
Venho agora alertar para uma outra área na qual o nosso comportamento pode ser bem mais importante do que à partida poderíamos imaginar. Falo da fast fashion.
A fast fashion (“moda rápida”) é um conceito que apareceu na década de 1990, desenvolvido sobretudo por cadeias como a Zara e H&M, que tornaram a moda acessível ao grande público; ou seja, democratizaram o consumo da moda, mas, simultaneamente, tornaram-na demasiado efémera, quase volátil. Introduziram o conceito de miniestação ao ponto de apresentarem uma nova coleção por semana, ou seja, 52 miniestações por ano.
A moda efémera consiste essencialmente num padrão de produção e de consumo: os produtos são fabricados, consumidos e descartados muito rapidamente. Assenta num modelo de negócio de produção rápida, baixa qualidade e preço muito competitivo, o que significa produção a muito baixo custo, seja de materiais seja de mão-de-obra.
Este processo alimenta o próprio sistema pois a efemeridade tem como consequência o aumento da produção e do consumo. Este conceito alterou profundamente a nossa mentalidade de consumidores, uma vez que se até então a roupa era tratada como um bem durável, hoje é vista como algo descartável, a utilizar por períodos muito curtos e nunca mais do que uma estação. Aliás, como acontece com muitos produtos consumidos pelas sociedades atuais.
Com um desenvolvimento acentuado nas últimas décadas, a indústria têxtil tornou-se a segunda indústria mais poluente do mundo seja pelas tintas utilizadas, de baixa qualidade e insolúveis, seja pela utilização de produtos à base de materiais pesados. Isto para além dos tecidos sintéticos derivados dos combustíveis fósseis.
Acresce ainda que o descarte rápido das roupas produz um enorme excesso de resíduos têxteis que atualmente poluem as regiões mais desprotegidas, até as mais recônditas, e que dificilmente terão solução no curto prazo (deserto de Atacama no Chile, ou os mercados de roupa em segunda mão nos países africanos, por exemplo).
Importa também denunciar que a roupa em segunda mão em muitos países mais desfavorecidos se tornou um grande negócio para os importadores desses países e um enorme problema ambiental para os países, para as populações e para todos nós. Para além disso, ao reduzir os custos de produção, coloca problemas de direitos humanos inaceitáveis, recorrendo a trabalho escravo e em condições intoleráveis de trabalho.
Quando a água é um bem escasso, nomeadamente a água potável, em muitos países e com tendência tornar-se um bem precioso nos países desenvolvidos, não deixa de ser atentatório à sustentabilidade do planeta o consumo elevado de água por parte da indústria têxtil.
Isto leva-nos a pensar que estes problemas não se resolvem localmente – de nada adianta atirar o meu lixo para a porta do vizinho – mas que a todos nós exigem uma consciência de habitarmos a mesma casa comum e, por isso mesmo, as soluções devem ser globais, transversais e a todos devem implicar.
A Fundação Jean-Jaurès publicou um relatório onde se faz o ponto da situação no que se refere à industria da Fast Fashion. O documento é da autoria de Fanny Hervo, especialista associada à Fundação Jean-Jaurès (França), jurista de formação e especialista em políticas públicas europeias, sobretudo políticas ambientais. Alguns números que constam do relatório:
• A indústria do têxtil e do vestuário duplicou entre 2000 e 2015. Até 2030 está previsto aumentar cerca de 63%.
• Enquanto o setor europeu empregava, em 2020, um milhão e meio de pessoas, sensivelmente 13 milhões de operários e operárias no mundo produziam a quantidade de roupa consumida na União Europeia.
• Anualmente, na União Europeia, quatro milhões de toneladas de têxteis são deitados fora. Os europeus, em média, compram cerca de 26 Kg de roupa por ano e deitam fora 11Kg. Isso representa cerca de 460 biliões (460 mil milhões) de dólares por ano.
• Entre 1996 e 2008 o preço do vestuário desceu 30%.
• Três mil milhões de toneladas de CO2 são emitidos anualmente para a atmosfera.
• Atualmente estão recenseadas cerca de 20.000 substâncias químicas diferentes utilizadas na indústria têxtil.
• A roupa em segunda mão triplicou desde 2020 e representa, em 2022, entre 3 e 5% do setor.
Na síntese do relatório sublinha-se o facto de ser necessário e urgente repensar o modelo de negócio da indústria têxtil “para proteger, por um lado, quem lá trabalha, uma vez que a indústria da moda desrespeita frequentemente os direitos fundamentais e internacionais, nomeadamente ao utilizar trabalho forçado para garantir o alto índice de produção.
Uma prática com consequências devastadoras para os trabalhadores a ela forçados e contra a qual a União Europeia pretende lutar, nomeadamente através da proposta de proibição de produtos derivados do trabalho forçado no mercado comunitário. (…) Por outro lado, é uma indústria a repensar por ser latamente prejudicial ao meio ambiente.”
“Importa apostar na economia circular, em novos requisitos em termos de ecodesign de vestuário ou proibição da destruição de itens não vendidos, são caminhos a serem explorados para limitar os danos ambientais da moda.”
“Se este relatório nos convida a pensar em formas de mitigar as consequências ambientais do fast fashion, abre também novas formas de pensar o vestuário.
Isto envolve, nomeadamente, um maior controlo por parte da União Europeia, cujo setor têxtil foi gravemente abalado pelas deslocalizações e pela perda de mão-de-obra qualificada. A revitalização do setor permitiria a produção na Europa.”
Entre as pessoas envolvidas e que colaboraram destaca-se Raphaël Glucksmann, deputado e vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos no Parlamento Europeu que se tem dedicado à temática dos direitos humanos na fast fashion, nomeadamente através da organização de campanhas, através das redes sociais, contra as multinacionais que beneficiam, por exemplo do trabalho escravo dos uigures, expondo-as à condenação pública. É também através das redes sociais que tem tentado, com algum êxito, envolver os jovens nessa luta. (O relatório inclui, no final, a entrevista a Raphaël Glucksmann.)
Também o Parlamento Europeu, pese embora a lentidão e dificuldades de vária ordem, se tem preocupado com estas questões. A verificação de que a Europa se tinha tornado demasiado dependente dos países asiáticos, tornando-se num continente consumidor e colocando na mão de terceiros, fechando os olhos, a possibilidade de cometerem crimes contra a humanidade e consequente tomada de consciência, fez com que a Europa tivesse um outro olhar sobre esta problemática. A mediatização dos crimes contra Uigures, a pandemia e as alterações climáticas tiveram como efeito a aceleração destes processos. A economia circular, combate aos resíduos têxteis, apoio a pequenas e médias empresas que respeitem os critérios ambientais e sociais, são algumas das apostas da União Europeia.
Catástrofes como a derrocada do Rana Plaza em 2013, (Savar, na periferia de Daca, a capital do Bangladesh), que matou mais de mil trabalhadores e feriu outros 2500, trouxeram “um mediatismo gigante” às más condições laborais vividas nas fábricas onde se produz “milhões de peças para as grandes marcas de fast fashion do Ocidente”, recorda Salomé Areias, Coordenadora do movimento Fashion Revolution para Portugal.
Marcas que procuram atuar com responsabilidade, ética e sustentabilidade ganharam força nos últimos anos. Estilistas, designers, profissionais e consumidores criaram um movimento global sem fins lucrativos, chamado de Fashion Revolution, que nasceu em 2014 no Reino Unido e atualmente age em todo o mundo. Esta ONG tem como objetivo consciencializar as pessoas sobre o verdadeiro custo das roupas e os impactos que elas podem causar no planeta. O slow fashion é uma vertente dos conceitos da Fashion Revolution que combate o consumo desenfreado da moda.
Se existe campo em que o nosso comportamento enquanto consumidores pode ter impacto é certamente no vestuário e calçado.
O que podemos fazer?
Começar por diminuir o consumo, tornarmo-nos mais exigentes e perceber se necessitamos mesmo do que temos vontade de comprar.
Optar por comprar roupa em segunda mão.
Procurar peças de boa qualidade, que durem mais tempo.
Procurar marcas nacionais que se preocupem com o ambiente e com a justiça social.
Evitar comprar em cadeias que não respeitem os valores ambientais, sociais e de segurança.
Mãos à obra, que o tempo escasseia e o nosso futuro, se queremos tê-lo, não se faz de adiamentos.
*José Centeio é editor da opinião no 7Margens e membro do Cesis (Centro de Estudos para a Intervenção Social); contacto: jose.centeio@gmail.com