Quando se torna cada vez mais difícil ignorar a catástrofe climática em curso e o colapso iminente de um sistema sócio-económico assente na energia abundante proveniente de combustíveis fósseis, vamos tentar compreender o que isso poderá representar para a saúde humana e para um sistema de saúde inserido na lógica do crescimento e da biomedicina, explorando caminhos alternativos em direção a “cuidados decrescentistas”.
Os atuais sistemas de saúde do Norte Global absorvem recursos económicos e financeiros crescentes que, na maioria dessas sociedades, se aproximam de 10% do produto interno bruto, ou já ultrapassaram essa meta, sendo ao mesmo tempo responsáveis por até 10% das emissões de gases com efeito de estufa desses países. Num mundo pós-crescimento ou decrescentista isso não parece possível nem desejável, sobretudo se quisermos alcançar sociedades mais justas, também numa perspetiva global, entre Norte e Sul.
Ao mesmo tempo, sabemos que são as condições sociais que determinam em larga escala o estado de saúde de cada pessoa, sendo a pobreza o indicador mais sensível para a má saúde e a doença crónica. No entanto, a “medicalização da sociedade” (no sentido de Conrad) tem vindo a definir condições sociais e humanas como doenças tornando-as apetecíveis para a indústria biomédica e farmacêutica.
Por outro lado, o ideário neoliberal promove a ideia da responsabilidade individual para uma “boa saúde“, e assenta em comportamentos pró-saúde, como a prática de exercício físico ou a alimentação saudável. No entanto, já em 1994, o crítico social e teólogo Ivan Illich, inspirador do movimento decrescentista, declarou que a premissa de encarar a saúde como responsabilidade individual merecia um enfático "não" quando “saúde" representa a adaptação a condições doentias e "responsabilidade" é reduzida a uma formalidade legitimadora num mundo de interligações injustificáveis (e incontroláveis) de sistemas industriais destrutivos.
E, afinal, a que saúde aspiramos? À saúde de acordo com a definição (ilusória?) da OMS que define saúde como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou indisposição”? Ou, em vez de um bem-estar completo, a um processo dinâmico que incluiria felicidade, prosperidade, independência física e mental, e participação ativa na comunidade?
Numa futura sociedade decrescentista a “saúde” e os cuidados terão de ser reconceptualizados a vários níveis, desde a sua definição como bem comum ao reconhecimento do trabalho de cuidado, em processos decisórios participados e condicionados pelo interesse coletivo e por limites éticos. Uma visão holística de cuidados terá de incluir seres humanos e não humanos, vivos agora ou pertencentes a gerações futuras, numa época de colapso em que se torna difícil pensar a vida, mantendo a saúde mental. Um sistema social que define o crescimento económico como prioridade tem fortes implicações no modo como os cuidados são organizados pois ao invés de assumir o cuidado como uma dimensão central na vida individual e coletiva, desvaloriza-o e invisibiliza-o. O facto de considerar o cuidado uma tarefa reservada predominantemente às mulheres, seja no âmbito do trabalho não-pago ou do trabalho mercantilizado, nomeadamente nas respostas para grupos específicos, como as pessoas idosas e as crianças, reflete o caráter interseccional da questão.
As consequências de uma distribuição desigual do cuidado por todas as pessoas que o poderiam assumir, independentemente do sexo ou do género, e por todas as organizações, desde o Estado a entidades privadas, o setor social ou soluções coletivas e comunitárias estão profundamente ligadas à crise global de cuidados. A saúde é um setor onde o cuidado está presente de forma particularmente visível. O nosso desafio é pensar a saúde e os cuidados, partindo de uma perspetiva centrada na promoção da vida no planeta, atendendo aos interesses das gerações presentes e futuras e a uma utilização justa dos recursos.
Não há respostas feitas para as estas interrogações, mas vamos explorar dúvidas, sugestões e possíveis caminhos numa oficina participativa, inserida no ciclo de eventos “Crescer até Rebentar?”, a decorrer no Sábado, dia 5 de novembro de 2022, das 15h00 – 17h00. A oficina será dinamizada por Graça Rojão e Hans Eickhoff e convida decrescentistas e todas as pessoas interessadas na saúde e nos cuidados num mundo de pós-crescimento a juntarem-se nesta exploração.
Leituras sugeridas
Ivan Illich (1995 [1975]). Limits to Medicine. Medical Nemesis: The Expropriation of Health. Marion Boyars. (As ideias centrais do livro podem ser encontradas aqui: Tântalo e a Expropriação de Saúde, em “Para uma História das Necessidades” (2018), pp 119 – 133. Edições Sempre-Em-Pé.)
Peter Conrad (2007) The Medicalization of Society. The John Hopkins University Press.
Katharine Zywert & Stephen Quilley (2020). Health in the Anthropocene (eds.). University of Toronto Press.