A disrupção violenta e abrupta da vida social e económica devido à pandemia da COVID-19 acaba de nos colocar perante questões existenciais, tanto individuais quanto coletivas. No entanto, ela não será sentida por todos da mesma forma e as desigualdades sociais vão intensificar os seus efeitos. A interrupção repentina daquilo que tomamos por adquirido, enquanto membros das sociedades privilegiadas do Norte global, representa, na dimensão do indivíduo, uma clara ameaça ao nosso bem-estar, à nossa saúde e à nossa própria vida. Numa dimensão coletiva, não podemos deixar de reparar no impacto que as medidas implementadas para conter a pandemia têm no meio ambiente, na diminuição do ruído nas nossas cidades, na melhoria da qualidade do ar, e na emissão global de dióxido de carbono. Possivelmente, a reação de governos e cidadãos face à pandemia fez mais pelo combate às alterações climáticas do que anos de negociações internacionais e centenas de ações ambientalistas ou protestos contra megaprojetos destrutivos dos nossos ecossistemas.
A atual redução da produção e do consumo, bem como a consequente recessão económica, não correspondem, no entanto, à transformação intencional, democrática e socialmente justa que o movimento decrescentista propõe. O que a pandemia tornou visível foram a insustentabilidade e fragilidade do atual sistema económico e financeiro globalizado, dada a sua dependência da movimentação incessante de pessoas, mercadorias e capitais. A implementação de medidas radicais e a declaração do estado de emergência são sinal de que o governo português, à semelhança de outros governos, é capaz de encarar situações de crise tomando medidas incompatíveis com um sistema económico baseado no crescimento exponencial da produção e do consumo. Devemo-nos perguntar então porque não somos capazes, enquanto sociedade, de tomar as decisões políticas necessárias para lidar com a catástrofe ecológica e climática em curso que, a médio e longo prazo, será muito mais lesiva para o bem-estar humano e para toda a vida na Terra?
Neste momento, a paragem forçada de grandes setores da sociedade devido à COVID-19 está a dar-nos a oportunidade de sentirmos que o mundo pode ser diferente: um mundo com menos ruído, menos poluição, menos consumo supérfluo e mais vagar (o que é bem vindo e uma outra forma de riqueza). No entanto, os impactos devastadores resultantes da privação do contacto social e da limitação da nossa liberdade (incluindo propostas de vigilância verdadeiramente orwellianas) representam ameaças cujo alcance ainda é difícil avaliar em todas as suas dimensões. Por outro lado, o desastre económico que se adivinha atingirá não apenas muitas empresas que não terão acesso aos bailouts anunciados, mas sobretudo trabalhadores precários, pequenos comerciantes e empresários em nome individual. Este cenário implica uma situação de grande instabilidade que poderá ser aproveitada para propor soluções autocráticas. Torna-se assim evidente que o atual sistema económico, construído sob premissas falsas, não é capaz de assegurar o bem-estar e a proteção, quer dos cidadãos, quer dos ecossistemas de que dependem. Esta situação abre um espaço necessário para pensar e discutir, com urgência e democraticamente, alternativas socioeconómicas da gestão dos comuns e das sociedades.
Os decrescentistas querem contribuir para os espaços de diálogo e de ação que possam gerar um movimento social amplo e plural capaz de criar as bases duma mudança social justa e duradoura. Querem promover alternativas compatíveis com o abandono do crescimento económico compulsivo e que capacitem as nossas comunidades para fazer face, de forma consciente e ativa, aos choques sistémicos que iremos continuar a enfrentar.
Os debates e as ações de que necessitamos terão de abranger diferentes tópicos, alguns contraditórios e tensos entre si, mas capazes de desencadear trocas de pontos de vista, de avançar na construção de caminhos que sejam conscientes e interativos, respeitadores da nossa casa comum e do equilíbrio dos ecossistemas; debates e ações que questionem a exploração e a posse a qualquer preço, o dogma do utilitarismo, e os mercados massificados de consumo desenfreado.
A sensibilização dos humanos aos ecossistemas terrestres, sem intrusões e abusos, a aliança com a vida e o que ela significa, a solidariedade generalizada, a responsabilidade assumida, as culturas de escuta do outro e de argumentação sólida, são algumas bases de partida para agir com sabedoria e criar modelos interativos e integrados, regenerativos e resilientes, participados a “partir das bases”. Necessitamos de uma sociedade pautada por valores fomentadores de seres humanos com sentimentos e sensíveis, sem medos, com amanhã e futuros de satisfação plena.
Neste momento avançamos com as seguintes propostas, algumas das quais já faziam parte dos debates dos decrescentistas e de outros movimentos que pugnam pela transformação social:
– realizar debates interdisciplinares, abertos à sociedade, abordando questões de mudança de paradigma socioeconómico;
– promover articulações e consensos entre os movimentos sociais e ambientalistas que permitam desenvolver propostas políticas adaptadas aos diferentes territórios ou bio-regiões;
– evitar um retorno ao sistema vigente (“voltar à normalidade”) sem promover as mudanças necessárias conducentes ao bem-estar, à sustentabilidade e à justiça social.
Nota: A equipa editorial da plataforma internacional ‘degrowth.info’ publicou uma declaração sobre o momento atual que aqui partilhamos e cujo teor pode enriquecer as nossas reflexões.
Álvaro Fonseca, Guilherme Serôdio, Hans Eickhoff, Jorge Farelo / Rede DC – Núcleo de Lisboa