Diz-se que a vida é um bem precioso. Que é mesmo o bem mais precioso. Porque é frágil, porque é passageira, mas também porque é presumivelmente rara no universo. Agarramo-nos a ela ou protegemo-la, quando a sentimos ameaçada. Sabemos, ou intuímos, muita coisa sobre ela: as formas diversas em que se manifesta, como funciona, como evoluiu e até como terá surgido. As diferentes sociedades humanas sempre lhe atribuíram um carácter sagrado, através das suas narrativas, mitologias ou cosmovisões. A modernidade ocidental foi substituindo os mitos pagãos e as narrativas religiosas sobre a vida pelo conhecimento trazido pelas ciências e pela tecnologia, e adicionou-lhe outras dimensões, como a das leis e dos direitos, numa tentativa de a gerir e administrar. Fomos impelidos por uma visão utilitarista dos recursos naturais e arrogámo-nos o direito de explorar e dominar outras formas de vida em nome de uma prosperidade dita ‘económica’. Apesar de todos os avanços alcançados no conhecimento sobre a vida e na gestão das sociedades humanas, entrámos no século XXI com uma plena consciência de que muito desse conhecimento e engenho se tinha afinal tornado uma ameaça para a própria vida - quer a dos seres humanos quer a dos não humanos. E apercebemo-nos de que as formas sofisticadas de gestão das sociedades humanas nos tinham afastado do cuidado pela vida porque criaram a ilusão de que aquele conhecimento científico e tecnológico nos permitiria autonomizar-nos da nossa base de sustentação: os ecossistemas vivos. A economia humana tornou-se na antítese da ecologia natural. A possibilidade das nossas sociedades, ditas ‘desenvolvidas’, se voltarem a relacionar de forma equilibrada com o mundo-mais-do-que-humano, depende agora de uma mudança de paradigma, que nos permita transformar o nosso papel de meros gestores e dominadores da vida para o de cuidadores e guardiões. Como aliás sempre o fizeram e continuam a fazer alguns povos indígenas, cujas cosmovisões e estruturas sociais, que integram a natureza na sua vida quotidiana, as nossas sociedades têm desvalorizado ou ignorado, considerando-as simplistas e primitivas. Pior do que isso, esses povos foram sujeitos a processos brutais de expropriação e genocídio em nome da prosperidade económica de uma parte privilegiada da humanidade.
Que possamos reparar os danos inflingidos aos ecossistemas e aos nossos semelhantes vivos (humanos e não humanos), (re)aprendendo uns com os outros, num caminho de regeneração, de colaboração e de apoio mútuo, tirando partido de um ecossistema diverso de saberes e vivências, baseado na equidade, na reciprocidade, na frugalidade e na suficiência, que nos devolva um mundo justo e sustentável, capaz de nutrir e de cuidar esse bem precioso e sagrado que é a vida.
Este texto é dedicado à celebração do Dia Global do Decrescimento, que tem este ano como tema o cuidado (‘care’), e consiste numa versão revista dum post publicado originalmente em 2020 (aqui).