Em Portugal, um pouco por todas as casas do povo, em conversas na tasca e na rua, associações de vizinhos e moradores, salas de espera, a conversa repete-se: “Estão a destruir tudo e não podemos fazer nada”. Os medos também: "Estão-nos a levar a água, a destruir e poluir os solos, e a meter ao bolso”. A sensação de impotência é a mesma: “as câmaras não conseguem fazer nada, não há legislação capaz e, quando existe, falta capacidade de fiscalizar”. A injustiça é outro sentimento omnipresente: “se eu quiser construir aqui uma casinha de madeira, caem-me logo em cima, pago enormes multas e tenho de a retirar. Mas se for para plantar um mega olival ou amendoal intensivo, nem a REN o evita, porque não há distinção legal entre “tradicional” e “intensivo” e portanto "ninguém deve cavaco a ninguém”...
Os subsídios gordos são na grande maioria para a agricultura industrial e intensiva (é a vergonha de ver as plaquinhas do Portugal 2020 nos portões dos olivais e amendoais super-intensivos que sorvem e poluem a tão pouca água que ainda temos). E quem explora são muitas vezes empresas estrangeiras que geralmente empregam pouco e mal, de forma precária (porque sazonal). Quando não são os super intensivos é a vinha, outra gigante monocultura (170 mil hectares dela). Parece que é tabu falar disso porque “faz tanta gente feliz”. Mas esta também é também uma monocultura agressiva, cheia de pesticidas, aplacada apenas por um romantismo de quem não vive da terra e gosta muito de ver aquelas linhas com uma única planta a cobrir hectares e hectares das melhores terras de Portugal. Ou o eucaliptal, a cobrir uns belos 760 mil hectares do país (ou 23% da área florestal do país). E não esquecer a crescente produção agropecuária, grande gourmet de água cada vez mais escassa, e de cereais cada vez mais caros; ou os painéis solares, também a sua instalação a bater recorde atrás de recorde - só no Cercal do Alentejo estão previstos mais de 1200 hectares(!). Em conjunto com as gigantescas minas de lítio e outros minerais, são milhares de hectares de Natureza sacrificados no altar da “transição ecológica”. Tudo incentivado e glorificado por governantes que, orgulhosos, se congratulam pela sua bela gestão do território e da economia. Tudo sem perguntar a quem habita os territórios a sacrificar. Tudo em nome da mera eletrificação de um sistema que sabemos tão destruidor mas que nem sequer consideramos, em toda a verdade, mudar. Um sistema que exige uma contínua e cada vez mais grave destruição da Natureza e dos seus sistemas vivos, incluindo comunidades humanas. Tudo e sempre em nome do crescimento económico, agora “verde”…
Mesmo quando já se sabe que não podemos continuar a crescer num planeta com recursos finitos. Mesmo quando sabemos que se todos vivessem como o português médio necessitaríamos de 2 planetas terra. Mesmo quando o IPCC (o maior e mais reputado esforço científico do planeta em relação ao ambiente) aponta a necessidade dos países ricos deixarem de crescer economicamente. Mesmo quando as populações se sentem brutalizadas e asfixiadas pela materializar deste crescimento económico à porta das suas casas e aldeias, com os poços e leitos de água a secar. Mesmo quando se organizam para impedir a violação dos territórios, a sabotagem dos seus meios de vida, o sacrifício de tudo quanto lhes é familiar e próximo. Não interessa para nada. Só interessa fazer lucro, vender mais, crescer mais.
Este texto é sobretudo para quem sofre este ataque impiedoso contra os seus territórios, e que sabe que a luta contra um sistema distópico, pelas vias que o próprio sistema permite, é forçosamente ingrata, e infrutífera. Todas as empresas que destroem a natureza (é escolher) continuam a operar e a recolher apoios e subsídios, independentemente da quantidade e da força da luta das populações contra os impactos dessa destruição. Podem-se ganhar algumas batalhas, talvez. Mas, no geral quem defende o ambiente, a sobriedade, o bom-senso ecológico, a preservação de modos de vida diferentes daquele a que este sistema obriga, está constante e presentemente a sofrer uma derrota humilhante e em toda a linha.
Falo de experiência própria. Passei anos em Nova York, Washington e Bruxelas a fazer lobby e a lutar por diferentes causas ambientais, pelas vias ditas “corretas, aceites”, e não tive(mos) uma vitória digna desse nome. Um exemplo: foram 12 anos de um enorme esforço de toda a sociedade civil organizada em torno de causas ambientais a pressionar, a gastar cérebros, tempo, significantes recursos financeiros e energia a tentar convencer decisores políticos da necessidade de proibir os plásticos de utilização única na Europa. Parecia óbvio nesta altura do campeonato, e “conseguiu-se”. Só que essa “vitória” apenas incluiu 10 (!) itens, dos milhões de itens em plástico produzidos e/ou vendidos todos os dias na Europa. DEZ! Basta uma ida a qualquer supermercado para se perceber que isto não é vitória nenhuma, e que cada iogurte, cereais, produto de higiene ou limpeza, etc, praticamente TUDO é envolto em plástico. Celebramos essas “vitórias” para não desmoralizar, mas na verdade não ganhámos uma. Todos os indicadores importantes (desflorestação, seca, degradação de solos, desaparecimento de espécies, emissão de CO2, poluição de plásticos, aumento de temperaturas, acidificação dos oceanos, etc etc) estão a piorar - e isso está a tornar-se palpável para as nossas gentes, cada dia um bocadinho mais.
Assim, estamos de costas contra a parede. Quem luta, fá-lo a tentar, sem sucesso, evitar os tantos golpes infligidos por um sistema que é incapaz de se questionar. O “escudo” da lei e do poder público, que devia proteger as populações, é feito de papel - e molhado. A justiça está, consequentemente, para lá de desacreditada - para o português comum, e especialmente para quem se preocupa com o ambiente.
Escrevo este texto para toda a gente que já sofre estas violências. Mas o que faria você (cidadão urbano) se viessem impor uma qualquer indústria à porta de sua casa? Uma que lhe roubasse a paz, as árvores e a água, que lhe poluísse o ar, que lhe roubasse o sustento e o modo de vida? O que faria quando se virasse para quem de direito e lhe respondessem com desinteresse ou impotência? Ou quando o aconselhassem a ter calma, a seguir os “trâmites normais”, esses procedimentos burocráticos caros e intermináveis, com zero (0!) casos de sucesso para o guiar? E quando se desse conta que na verdade o “interesse público”, independentemente do seu voto, apoia (com subsídios e narrativas) a continuação dessas violências, porque contribuem para o crescimento económico do país? E que por isso, “é assim”? E que por isso não há nada a fazer? E que por isso há que calar e comer e encarneirar, que é melhor e mais fácil para toda a gente?
E se, nessa situação, tivesse uma “espada” na mão?... Pegar-lhe-ía? Defender-se-ía? Há uns anos, uma população portuguesa, alertada e avisada, escolheu fazê-lo e defender a sua terra - desenraizando plantações intensivas. É um isolado caso de sucesso em Portugal e ainda hoje colhem frutos dessa coragem. A ação direta de populações afetadas por legalidades imorais - tanto históricas como as que regem hoje a nossa agricultura e gestão territorial - foi o elemento essencial aos mais importantes exemplos de sucesso na defesa de tantos direitos básicos mundo fora: por exemplo, recolher sal, apanhar um autocarro, ou organizar a sua própria auto-defesa quando fazê-lo era (tão) ilegal (quanto imoral), foram as faíscas que lançaram alguns dos maiores e mais eficazes movimentos cívicos na história. Foram as espadas que populações oprimidas e desempoderadas encontraram - e tiveram coragem de utilizar. Hoje, continuam a haver espadas por todo o lado, à espera de serem reclamadas por tantas populações à beira de um abismo. Mas é “mal visto” por quem não vive esses flagelos diariamente, e por isso ali ficam, à espera…Já todos sabemos, que vêm aí tempos conturbados. Cada vez mais, em Portugal e por toda a parte, vamos precisar de territórios funcionais, com ecossistemas equilibrados, com árvores e água limpa em abundância, com solos vivos, com comunidades empoderadas e ligadas às riquezas e saberes locais. Vamos precisar de reavivar capacidades produtivas locais e necessárias. Temos direito a viver nos nossos lugares, e de adotar os tipos de vida que desejamos. Contra o avanço desta distopia da modernidade para que nos empurram, precisamos de levantar essas espadas na defesa dos nossos territórios. Desenhar e imaginar novas estratégias de luta para além daquelas que o mesmo sistema que nos destrói os territórios nos “permite”. Ter a coragem e a sobriedade de ver que estamos a jogar um jogo viciado, em que as regras não nos permitem ganhar. Descentralizar e adotar ações de resistência mais… assertivas. Procurar parcerias noutras lutas e ruralidades. Escrever e cantar novas Grândolas. E perceber, interiorizar, que perder este “jogo” significa perder tudo.