Escrevo isto num desabafo, porque tem de me sair, porque não acredito que não se discuta mais nada para além de mil e uma maneiras de continuarmos no mesmo caminho, com apenas ligeiras alterações conforme os ventos eleitorais. Não o escrevo para atacar ninguém em particular, mas sim uma atitude generalizada, que nos está a impedir de ver, sonhar e imaginar mais além do que o que nos é “permitido”, ou seja, para além daquilo considerado “válido” pelas métricas em que vivemos hoje.
A wikipédia oferece um vislumbre do que aí vem para as populações e movimentos sociais que se opõem a vários megaprojetos que o governo vai agora empurrar: à custa do ambiente, de oposições locais e de um bom senso que se impõem a qualquer gestão do século XXI. Na wikipedia isto é explicado sob o título de “Tirania da maioria, ou ditadura da maioria - um termo utilizado em discussões acerca de democracias com decisões por maioria absoluta, para descrever cenários em que os interesses de minorias são consistentemente obstaculizados por uma maioria eleitoral, constituindo uma opressão comparável à das tiranias”.
É o rugido que, desde a maioria absoluta do PS se tem ouvido cada vez mais forte, por serras, rios e zonas protegidas de todo o país. Inclui, por exemplo, alterar a lei para poder “tirar a capacidade de parecer vinculativo aos municípios”, prescindindo mesmo de alianças com outros partidos para se fazer o que se quiser. É assim que se "obstaculizam as minorias”, e é assim que se vai avançando “democraticamente” o novo Aeroporto - apesar das cerca de 1170 razões pelas quais não se devia sequer considerar um novo aeroporto. Noutro exemplo, com contratos assinados à pressa e em calendários moralmente inaceitáveis, avança-se a mineração em todo o país, à revelia de quem sofrerá os maiores impactos dessas gigantescas feridas na natureza. Cerca de 1/4 do país está mapeado para mineração.
Mas a tal tirania da maioria não se cinge a este PS pós-eleitoral. Essa tirania permeia todos os partidos (que, sem exceção, apoiam minas, expansão ou novos aeroportos, a transição verde, etc). E vem também de todes nós que, exaustes de uma vida sem tempo de qualidade, de cansaço, de stress, de medos (incutidos e reais), nos tornamos incapazes de considerar seriamente mudar para uma vida diferente. Ou seja, gostamos do campo (e as crianças também) mas continuamos a querer uma vida dita “moderna” mas agora “verde” - mesmo sabendo -e intuindo- já que isso não é possível. É a única coisa que se ouve nas rádios e na televisão. A tirania desta visão de “progresso” (tecno-industrial), deste discurso dogmático da “modernidade” (cada vez mais urbana e digital), e desta dependência suicida no crescimento económico a todo o custo, que afunila todas as discussões numa visão única de sociedade, inescapável. Toda e qualquer ideia que pretenda abandonar o crescimento económico como indicador de progresso, que se atreva a imaginar uma vida diferente, mais rural e com mais tempo, com mais comunidade e cadeias de produção e consumo é imediatamente (como agora?) taxada de “irrealista”, “hippie”, “querem voltar à idade da pedra”, “vão para Cuba viver”, etc.
Senão vejamos alguns exemplos:
Que problema tem uma mina industrial a céu aberto no interior do país? Uns buraquinhos atrás do sol posto, onde ninguém (da cidade) vive ou vai visitar, com consequências que não se vão sentir “perto de casa”, e que ainda por cima permitem a tal tão necessária, urgente e inescapável “transição verde”? Faça-se. São “buraquinhos” de 150 metros de profundidade e meio km de extensão (como no Barroso) no coração das serras e a afetar 17 parques naturais e áreas protegidas em Portugal? Não interessa, o que “tem de ser” tem muita força. Faça-se.
E que problema têm as estufas ou a monocultura gigantesca a crescer por todo o país? Os eucaliptos são verdes e contam (para os olhos e mercados de CO2) como floresta; e são tão bonitas aquelas linhas a perder de vista de oliveirinhas e amendoeirinhas a produzir, produzir, produzir. É o progresso! Sim, começa a faltar a água, os rios estão poluídos, e a produção artesanal não tem maneira de competir, erodindo os tecidos sociais e económicos do interior. Mas isso é longe da realidade que nos dizem que queremos, a única que podemos almejar, por isso o que é que interessa? Continua a sair água das torneiras em nossa casa, os parques onde passeamos o cão são verdes e biodiversos, e quando se vai de férias escolhem-se outros destinos menos industrializados. Ah, e é bom ter abacates e morangos bio a qualquer altura do ano nas prateleiras do supermercado da esquina; E(!) também ajuda o PIB nacional - por isso, pronto, não há discussão. “Tem de ser”. Faça-se.
E para manter os níveis de consumo energético a que nos habituámos? Não queremos, não podemos, abdicar de nada. “Precisamos” do progresso que nos vendem como único: o dos nossos laptops, tablets, smartphones, televisores e sistemas de som, tudo em promoção black friday, e agora as smartcities, os carros individuais (os fósseis e agora os elétricos), e mais tudo elétrico, a revolução digital, Internet of Things, etc. Mas também não podemos poluir a atmosfera, por isso, fácil(!): ergam-se mega parques fotovoltaicos, outros eólicos (sempre no mundo rural, onde ninguém mora nem quer ir), abram-se mais minas (naquelas serras “longínquas, vazias de coisas e de gente”) para podermos produzir e armazenar a tanta energia que “precisamos”; “tem de ser, tem de ser”. Faça-se.
É esta a verdadeira tirania da maioria. Não é a recente maioria do PS. É a “maioria” deste sistema de crescimento, em que o foco é sempre o de aumentar o (já insustentável) nível de vida (especialmente, tem de ser dito, nas cidades - de onde vêm a maioria dos votos “que contam”). Mesmo que isso implique votar zonas imensas a um verdadeiro sacrifício à deusa modernidade. É a tirania de uma narrativa repetida ad nauseum pelas instituições e meios de comunicação, que nos diz que não há outra maneira: “ou esventramos, monocultivamos e poluímos tudo, ou não conseguimos a) crescer economicamente e b) salvar o planeta (sim, por esta ordem de importância)”. Porque o futuro tem de ser digital, tem de ser “verde”, tem de crescer economicamente (sempre mais), tem de ser este sistema político (sim, até para a democracia parecem querer -e conseguir?- convencer-nos que chegámos ao “fim da história”), enfim…
É uma tirania que de tão martelada se nos entranha no espírito e nos faz desacreditar, logo à partida e sem curiosidade, de qualquer alternativa que não seja acelerar ainda mais este modo de vida. E vamos continuando, sem mudar nada, à espera do milagre tecno-sebastiânico que nos há de salvar a tod@s, mesmo a tempo de um final feliz (don’t look up?).
Publicado a 10 de Fevereiro no Público