Um tribunal holandês acaba de condenar a empresa Shell (Produtora de petróleo em todo o globo), a reduzir as suas emissões de CO2 em 45% até 2030. Está a ser anunciado, por todo o lado e mais uma vez, como uma vitória "cataclísmica" do ativismo climático contra os combustíveis fósseis, que nos deve dar esperança de um futuro vivível, onde tudo possa continuar “normal”, mas agora verde e renovável.
Só que, “pasme-se”, a decisão tomada não foi sobre nem levará à redução dos produtos que a Shell vende: i.e. o petróleo. Foi, sim, sobre as emissões das suas próprias operações (de extração desse petróleo). Ou seja, a Shell pode e vai continuar a extrair e vender o petróleo que alimentará a máquina produtivista global (onde realmente acontecem as emissões de CO2), mas agora tem de o fazer por via de uma cadeia de produção e extração “sustentável”... É a metáfora(?) perfeita para o que parece ser a nossa estratégia e visão para a sociedade como um todo, e é aplicável a tudo: os gigantes barcos-fábrica que já esvaziaram o oceano de mais de 95% do seu peixe poluem muito a navegar e trabalhar? Façam-se então barcos “verdes”, elétricos, mais modernos, mais baratos para podermos ter mais deles, melhor capazes de obter a maior quantidade possível de peixe, cada vez mais raro e portanto difícil de apanhar, cada vez que vão ao mar. Os mega-buldozers que destroem as selvas do mundo, deitam muito fumo e poluem enquanto arrasam florestas? Não há problema. A solução é óbvia: fazem-se uns novos, sempre elétricos claro, com mega baterias e 20x a potência dos velhos, capazes de aumentar a capacidade produtiva de conseguir mais madeira por hora, baixando-lhe o preço, para se poder vender ainda mais. E depois todos os barcos de transporte, toda a frota de carros, todas as máquinas agrícolas, etc, etc… tudo elétrico e verde e vai ficar tudo bem.
Quer isto relembrar que o nosso problema não é apenas ambiental - é ecológico, e resulta da nossa dependência de crescimento económico a qualquer custo – literalmente. A nossa visão não pode ser algo que para se materializar implica destruir o restante das florestas do mundo, abrir milhares e milhares de minas de tudo e por todo o lado, e de extrair e queimar todo o petróleo que ainda há no chão. A nossa visão também não pode ser algo que implique continuar a violentar pessoas sistematicamente, de modo a conseguirmos manter os preços acessíveis a massas cada vez mais empobrecidas. Imagina-se a quantidade de energia (hoje ainda 85% fóssil, globalmente) e materiais (minerais, petroquímicos, orgânicos) necessários para produzir os milhares e milhares de painéis solares, eólicas, baterias, cabos, carros elétricos, aviões, e todos os milhões de novos gadgets digitais e elétricos para realizar a visão do “green deal europeu”? E das “smartcities”?
É a nossa pescadinha de rabo na boca.
Com o foco apenas no decréscimo de emissões, as soluções que “queremos” e celebramos agravam imensamente a destruição de ecossistemas e sociedades inteiras - os dois eixos de qualquer colapso civilizacional estudado até hoje. A nossa estratégia enquanto ativistas climátic@s acaba por ser assim uma estratégia de “forçar” empresas (muitas delas que deviam desaparecer o mais rapidamente possível), a converter-se apenas à sustentabilidade nas suas operações. Isto enquanto continuam as suas operações, neste caso a extração e processamento de combustíveis fósseis! Ao celebrarmos estas “vitórias”, assinalamos claramente à indústria mundial que a nova direção é o “renovável”, o “verde”, o elétrico e o digital. Ou seja, incentivamo-la a mover-se, investir e carregar nessa direção, acelerando a insustentável destruição necessária para que essa visão se materialize.
Essa não pode ser a nossa estratégia enquanto sociedade. E não pode ser a nossa estratégia enquanto ativistas climátic@s. Está urgentemente na altura de sermos o mais corajos@s que conseguirmos. Como, ao contrário de uma guerra por exemplo, esta não é uma ameaça visível (ainda, e no ocidente), a nossa coragem tem de começar por um sítio diferente. Precisamos olhar para dentro para sentir o todo, e o que aí vem, e interiorizar o que significa isto tudo que já estamos a ver e a viver. Sentir a grande vertigem do desequilíbrio deste colosso insustentável que construímos, e que está neste momento no ponto de inflexão. E responder às questões que forçosamente nos coloca, mesmo que nos assuste – e assusta. Feito isto, deixemos que novas realidades (primeiro em nós, depois coletiva e colaborativamente construídas) nos redirecionem a vida e a maneira como nos batemos por ela; que nos levem a rever prioridades, objetivos, incentivos e estratégias; que nos permitam sonhar diferente, bem para além do crescimento económico, do materialismo que se substitui à felicidade, e dos sonhos distópicos de um sistema que os vende a todo o custo porque não tem (outra) saída.
Há muitas, mesmo muitas, ideias sobre como começar a reorientar sociedades num sentido “decrescentista”, i.e. para além do imperativo do crescimento económico. São ideias que nos devolveriam a democracia participativa, que nos aproximariam entre nós, que criariam comunidades, renovariam saberes, e construiriam economias reais. São ideias “radicais”, e que propõem reduzir o tempo de emprego e substitui-lo por trabalho relevante, regenerando rios e solos, vidas inteiras e até os mares.
E não nos enganemos nem facilitemos. Há dificuldades, claro: económicas, geopolíticas, de incentivos, de gestão de uma transição, de poderes instalados, de muita gente que “não quer mudar”, de discórdia, de potencial de (mais) violência. Nada mais verdadeiro, difícil e urgente. Mas dificuldades não são impossibilidades, são desafios a que vamos ter de responder. Impossibilidade é continuar no mesmo sentido, na mesma lógica, e com as mesmas estratégias.
Como ecologistas, precisamos de repensar a nossa visão, resgatar-nos aos poderes que a impedem e cooptam, e experimentar com novas estratégias, eficazes e decisivas, que nos permitam ganhar a luta da (nossa) vida. E/Ou a preparar-nos para os choques inevitáveis que tais desequilíbrios vão trazer.