Na sequência da Conferência "Lei de Bases do Cima: Greenwashing ou Progresso?" que se realizou-se a 15 de março de 2023 por iniciativa da Associação Último Recurso, fazemos uma análise crítica da Lei de Bases do Clima que entrou em vigor em fevereiro deste ano.
O último relatório síntese do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), apresentado publicamente no dia 20 de março, não deixa margem para dúvidas. As emissões globais de gases com efeito de estufa (GEE) não param de subir, com contribuições históricas e atuais desiguais entre regiões e países, mas também desiguais dentro de cada país, sendo as pessoas e as regiões que menos contribuíram as mais afetadas pelas consequências da crise climática. Para evitar que a catástrofe em curso se agrave, seria preciso uma redução rápida e sustentada das emissões, para além dos (insuficientes) compromissos nacionais já assumidos e por cumprir. Nada disso está à vista, obviamente, e as emissões de CO2 a partir de energia fóssil atingiram máximos históricos em 2022.
Felizmente, em Portugal já temos uma Lei de Bases do Clima!
A 5 de novembro de 2021, a Assembleia da República (AR) aprovou a muito aclamada Lei de Bases do Clima (LBC), com os votos a favor de quase todas as bancadas e deputadas não-inscritas, a abstenção do PCP, e o voto contra da Iniciativa Liberal. Com tanta unanimidade, não é surpreendente que a lei aprovada não seja mais que uma solução de compromisso entre os sete (!) projetos de lei que foram submetidos pelo PS, PSD, BE, PAN, Os Verdes e pelas duas deputadas não-inscritas, não pondo, evidentemente, em causa o atual sistema socioeconómico baseado na acumulação cada vez mais desigual e no aumento exponencial da produção e do consumo (de alguns), incompatível com o equilíbrio climático e a regeneração da biosfera.
“De boas intenções o inferno está cheio”
O artigo 4.º da Lei Europeia do Clima, de 30 de junho de 2021, estabelece os objetivos climáticos intermédios para 2030 que devem compreender uma redução de, pelo menos, 55% em comparação com 1990. Também a Lei de Bases do Clima portuguesa não quer ficar atrás e prevê, no seu artigo 19.º, uma redução de 55%, mas em comparação com 2005 (em vez de 1990). Curioso que não tenha sido escolhido o mesmo ano de referência, embora a percentagem seja exatamente a mesma, não é? Mas não é nada curioso, não sendo acaso que o ano 2005 tivesse sido o ano com o recorde de emissões de GEE (86,5 Mt), enquanto em 1990 as emissões não excederam as 59,5 Mt. Se a LBC utilizasse o mesmo ano de referência da Lei Europeia, as emissões teriam de baixar até 26,8 Mt em 2030, em vez de mais suaves 38,9 Mt que resultam da LBC. Milagre contabilístico e do marketing político, certamente! Mas ainda bem que há milagres, uma vez que ainda falta (quase) tudo para tornar a lei efetiva. Apesar de já ter entrado em vigor a 1 de fevereiro de 2022, ainda se aguarda pela sua regulamentação (que deveria ter acontecido até 1 de fevereiro de 2023) e pela implementação de peças fundamentais para a sua operacionalização. A saber: o Conselho de Ação Climática (artigos 12.º e 13º), o Centro de Investigação Climática (artigo 64.º), a estratégia industrial verde (artigo 68.º), a estratégia da transição justa (artigo 69.º), o diploma próprio para um regime contraordenacional (artigo 72.º), os planos sectoriais (artigo 74.º), o relatório que identifica os diplomas em potencial divergência com as metas e instrumentos climáticos da presente lei (artigo 75.º), a regulamentação da matéria da partilha de informação sobre a integração do impacte e risco climáticos na construção dos ativos financeiros (artigo 76.º), o relatório sobre o património público, os investimentos, as participações ou subsídios económicos ou financeiros em causa, referidos no artigo 36.º (artigo 77.º) e a revisão das normas sobre governo das sociedades e do regime jurídico dos hidrocarbonetos (artigos 78.º e 79.º). Coisa de pouca monta, claro, e ainda bem que a lei escolheu oportunamente o ano de referência para o cálculo do objetivo das reduções. Porque, se utilizássemos a metodologia do Acordo de Glasgow que combina a responsabilidade histórica, a capacidade económica e a justiça para com os povos do Sul global, a redução das emissões teria de ser de 75%, em comparação com 20181, na perspetiva de ficar abaixo de 1.5ºC de subida de temperatura global média em comparação com a época pré-industrial!
Mas se a Lei de Bases do Clima fosse cumprida?
Tendo em conta a sua génese, a LBC não rompe, nem pode romper, com a lógica do sistema capitalista e da economia do mercado que assentam no crescimento exponencial, na acumulação e no extrativismo, individualizando a responsabilidade pelo combate às alterações climáticas. A fiscalidade “verde” e a aplicação de uma taxa de carbono, acompanhada pela eliminação dos benefícios fiscais e dos subsídios existentes (artigo 28.º) afeta sobretudo os mais pobres e a classe média quando não acompanhado por um racionamento que permite o acesso a quantidades básicas de energia a preços reduzidos e impede que quem tenha dinheiro simplesmente pague para poluir. O estímulo ao consumo através de deduções fiscais para “produtos verdes” (artigo 32.º) é igualmente duvidoso e beneficia, regra geral, a população mais favorecida em termos socioeconómicos. A proposta da chamada “taxonomia verde” a nível europeu, transposta para o artigo 36.º da LBC, incluindo a exploração de gás fóssil, energia nuclear, e pasme-se, de 90% da frota de aviões da Airbus, não é mais do que a tentativa desesperada de escamotear a incapacidade de pensar sequer numa transformação radical do sistema. O objetivo da (tardia) eliminação de gás fóssil para a produção de eletricidade até 2040 (artigo 39.º) é logo relativizada no artigo seguinte, criando exceções para assegurar a segurança de abastecimento de eletricidade (artigo 40.º). O eufemismo dos “gases renováveis” (artigo 44.º) encobre a realidade da ineficiência da produção de hidrogénio verde quando comparado com a utilização direta de eletricidade renovável e o facto da queima de “biocombustíveis” emitir CO2 é simplesmente omitido. O problema da destruição de ecossistemas pela mineração a céu aberto, e não só, apenas merece uma frase que a condiciona a avaliações ambientais estratégicas, de pouca eficácia no passado (artigo 46.º). E ainda se prevê o subsídio a veículos elétricos, híbridos e movidos a hidrogénio (artigo 48.º), apesar dos impactes da sua produção assente na mineração, para além do consumo energético que implicam. A “economia circular” (artigo 51.º) é enaltecida como eixo fundamental da descarbonização, sem se mencionar que menos de 10% dos materiais são reciclados, habitualmente para produtos de qualidade inferior, e com grande desperdício de água e energia. Em relação à biomassa florestal, as indicações são contraditórias: ou se aproveita (artigo 51.º) ou se mantém nos solos (artigo 56.º): em que ficamos? A gestão da água (artigo 52.º) não aborda o problema dos excessos provocados pela agricultura super-intensiva, pela indústria e por luxos como campos de golfe, apelando somente à “consciência do consumidor”, o que também acontece no que diz respeito aos impactes climáticos (artigo 53º) ou à alimentação (artigo 56º.). A “sensibilização da sociedade” (artigo 61.º) acompanha políticas económicas de crescimento “dentro dos limites do planeta” (artigo 67.º) quando sabemos que muitos desses limites estão a ser (ou já foram) ultrapassados.
Em 2021, no seu parecer sobre os vários projetos de lei então em discussão na Comissão de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território da Assembleia da República, a Rede para o Decrescimento elencou os princípios orientadores para uma Lei de Bases do Clima verdadeiramente transformadora, incluindo a abolição da primazia do produto interno bruto, o reconhecimento dos limites biofísicos da Terra, a implementação de justiça climática, e a necessidade de soluções tecnológicas de baixa complexidade. Assim, a transformação política e social teria de assentar na redução da escala de produção e do consumo, reduzindo o uso de materiais e o gasto energético, e na melhoria da qualidade de vida dos muitos e não apenas de alguns poucos, baseando-se nos princípios de autonomia, de suficiência e de cuidados.
Perante propostas ambivalentes, falta de regulamentação e apelos estéreis à consciência individual, uma coisa é certa: não é esta Lei de Bases do Clima que irá promover a mudança sistémica e radical que será necessária para fazer frente à crise climática.
1 Em 2018, as emissões de GEE, sem contabilização das emissões dos setores do Uso do Solo, Alteração do Uso do Solo e Florestas (LULUCF - Land Use, Land Use Change and Forests), eram substancialmente mais baixas do que em 2005: 67,8 Mt em vez de 86,5 Mt. Assim, seguindo a metodologia do Acordo de Glasgow, as emissões em 2030 não poderiam ser superiores a 17 Mt, menos de metade dos objetivos da atual LBC.
Nota: A ZERO organizou uma mesa redonda sobre a “ Última chamada para a implementação da Lei de Bases do Clima” com decisores políticos de sobre a implementação da Lei de Bases do Clima, a ter lugar em 1 de junho de 2023. No final a assistência terá oportunidade de intervir com questões.
Inscrições: Gratuitas mas obrigatórias neste link.