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Ferramentas Decrescentistas para Práticas Artísticas (versão de 2023)

Tradução para português do artigo Degrowth Toolbox for Artistic Practices, de Alexandra Papademetriou
Ferramentas Decrescentistas para Práticas Artísticas (versão de 2023)

Introdução

O conjunto de Ferramentas Decrescentistas para Práticas Artísticas (FDPA) é simultaneamente uma proposta e um convite. Surgindo de um processo continuado de pesquisa artística, esta “Caixa de Ferramentas” (toolbox) lança as seguintes perguntas: Como pode uma abordagem de decrescimento às artes ser imaginada e implementada? A arte é frequentemente mobilizada nos movimentos activistas ao serviço da mudança social, mas como podem os valores activistas ser incorporados nas práticas artísticas para criar um campo mais equitativo e humano?

O objetivo é formular uma estrutura conceptual para práticas criativas e expositivas orientadas para o decrescimento, compondo simultaneamente um conjunto de ferramentas para artistas, curadores e instituições, com a intenção de desenvolver práticas criativas éticas e sustentáveis no actual período de prolongada crise social e para além dele.

O material aqui apresentado inicia-se com uma breve visão geral do conceito de decrescimento, para depois abordar alguns valores e rejeições/renúncias fundamentais. A partir destas bases, as FDPA propõem um conjunto de estratégias direcionadas para a criação de uma maior equidade nas artes.

As FDPA oferecem algumas ideias iniciais, algumas posições e provocações – mas o material aqui apresentado é oferecido como uma proposta, como um ponto de partida para um diálogo mais aprofundado, como algo a ser desenvolvido e desconstruído. Não é apresentado como definitivo ou acabado.

Decrescimento

Emergindo do campo da ecologia política, o decrescimento significa, antes de mais, uma crítica à narrativa do crescimento económico perpétuo e à centralização do crescimento como objectivo social.1 Nas culturas capitalistas, o conceito de crescimento está associado, de um modo geral, à melhoria, à prosperidade e ao bem-estar: quanto mais produzirmos e acumularmos – enquanto indivíduos, instituições e nações –, melhor para nós. Consequentemente, os nossos objetivos tendem a ser orientados para o crescimento. Tal como os nossos governos almejam sempre valores de PIB mais elevados, também nós nos esforçamos por trabalhar mais, produzir mais e ganhar mais. Aqueles de nós que trabalham nas artes tendem também a presumir que quanto mais trabalharmos e mais arte produzirmos, mais oportunidades surgirão e mais capital (financeiro ou cultural) obteremos. Na sua essência, a continuidade do sistema capitalista depende do desenvolvimento económico perpétuo. O decrescimento, por outro lado, aponta para o simples facto de que o crescimento infinito num planeta finito é impossível.

Para além desta crítica, o decrescimento propõe também possíveis alternativas. Embora emerja de múltiplas correntes de pensamento ecológico e social e, consequentemente, não represente uma visão única e unificada de um futuro “decrescido”,² o consenso aponta para a reestruturação das sociedades em torno dos valores do bem-estar da vida humana e não humana, da equidade, da autonomia, da simplicidade, da convivialidade e do cuidado.³ Por outras palavras: “O decrescimento é, portanto, uma forma de apresentar um novo imaginário que implica uma mudança de cultura e uma redescoberta da identidade humana desligada das representações económicas.”⁴

Valores

Bem-estar

Na literatura do decrescimento, o bem-estar é entendido como a satisfação das necessidades humanas fundamentais, abrangendo não só o conforto material, mas também as relações sociais, a autonomia, a sustentabilidade ecológica e um sentimento de propósito. Envolve uma distribuição equilibrada e equitativa dos recursos, o fomento de comunidades resilientes e um estilo de vida que respeita os limites ecológicos do planeta. Isto contradiz as métricas mais comuns de “bem-estar” na sociedade capitalista, como a riqueza material.

Cuidado

O cuidado é um contributo fundamental para o bem-estar das pessoas e das comunidades. De um modo geral, engloba todas as ações diárias dedicadas à subsistência, à reprodução e à satisfação das relações humanas. Isto já abrange todas as facetas da vida humana, mas, para nos focarmos no mundo da arte, inclui todo o trabalho invisível necessário para garantir que tudo funciona bem: que o espaço está limpo, que há café e vinho disponíveis, que a administração está em ordem e que os colaboradores não se matam uns aos outros.

Compreender e valorizar o cuidado exige o reconhecimento da nossa interdependência inerente – ninguém é auto-suficiente e todos precisamos uns dos outros para sobreviver e prosperar.⁵ No nosso paradigma neoliberal e patriarcal actual, o trabalho de cuidado é sistematicamente desvalorizado e obscurecido, sendo que aqueles que mais prestam cuidados são também os mais excluídos: como as mulheres, os migrantes e a classe trabalhadora. As ideias de bem-estar social foram postas de lado em favor de noções individualizadas de resiliência, satisfação e autoaperfeiçoamento. Ao reconhecer e centralizar os cuidados nas nossas vidas, práticas e sociedades, estamos também a centralizar o bem-estar e a equidade. Quando nos consideramos indivíduos isolados e agimos como tal, mantendo-nos isolados uns dos outros, entrincheiramo-nos ainda mais na precariedade, tal como aqueles que nos rodeiam. A alternativa é trabalhar em solidariedade uns com os outros.

Comunidade/Coletividade

Aqui, entende-se por comunidade uma entidade social coletiva e interligada, caracterizada por valores partilhados, apoio mútuo e compromisso com um objetivo comum. É importante não cair na armadilha de uma representação idealizada de comunidade como um lugar de amor e apoio incondicionais (tal coisa não existe), ou como um termo vago e abrangente que denota um grupo de pessoas que, presumivelmente, têm as mesmas experiências ou interesses (o que é, obviamente, uma presunção). As comunidades são fundamentalmente redes pragmáticas de membros autónomos, baseadas em relações recíprocas que precisam de funcionar e requerem um trabalho contínuo de cuidados para manter a sua saúde e funcionalidade.

A ênfase na comunidade e na coletividade funciona aqui em conjunto com o ponto levantado na secção sobre o cuidado: combater a ideia do indivíduo como um ser isolado. A nível prático, unir-se e partilhar recursos cria um efeito de sinergia – levando a uma utilização mais intensiva e diversificada dos recursos e, portanto, ao reforço de uma cultura de contribuições baseada na solidariedade. Isto, por sua vez, pode promover a inspiração mútua e o apoio local. E, claro, em termos de promoção de mudanças no mundo da arte: a realidade é que nenhuma mudança sistémica pode ser alcançada por indivíduos isolados, e quando trabalhamos sozinhos, somos muito mais fáceis de manipular.

Rejeições/Renúncias

Eficiência

A ênfase na eficiência, no seu sentido tradicional, tende a priorizar a maximização dos resultados com o mínimo de recursos, mentalidade profundamente enraizada na lógica de mercado capitalista. Esta abordagem, embora aparentemente eficaz num sistema artístico neoliberal, é insustentável e incompatível com a prática artística. A eficiência contraria: profundidade, complexidade, nuance, exploração, experimentação, reflexão, avaliação, reavaliação, discussão, crítica, processos participativos, inclusão de múltiplos pontos de vista, e estruturas de cuidados. Tudo isto em favor de: resultados facilmente quantificáveis, e prazos cumpridos.

A eficiência, claro, é imposta na prática quando se trabalha em vários projetos em simultâneo (ver “Hustle culture”, abaixo), tentando maximizar as oportunidades profissionais em campos altamente competitivos.

Competição

Grande parte da estrutura do mundo da arte favorece a competição. As bolsas de estudo são disputadas. As escolas de arte promovem competições para os estudantes. Os estudantes competem por financiamento. Centenas competem por uma única vaga de professor numa escola de arte. Os professores competem entre si. Os artistas competem entre si – roubando ideias em vez de as partilhar, ou usando as leis de direitos de autor para se protegerem contra a reutilização consciente. Os artistas competem por exposições num número limitado de espaços expositivos, em vez de encontrarem as suas próprias formas de expor fora destes locais competitivos. Os artistas escondem oportunidades dos seus amigos como forma de obter vantagem na competição movida a capital. Galeristas e curadores competem entre si. Esta é uma engrenagem feita de excrementos em decomposição, tão desprovidos de nutrientes que nem o seu adubo permite que algo novo cresça.”⁶

Apesar da recente onda de práticas e coletivos artísticos socialmente engajados que estão a entrar no mainstream, ainda não nos vimos livres do mito persistente do artista como génio solitário. A realidade para a maioria de nós é que ainda somos indivíduos solitários envolvidos em constante competição uns com os outros: competindo por trabalho, por espaço para exposições, por atenção, até mesmo por educação. Quanto mais se ganham estas “competições”, mais se continua a ganhar, mais recursos se acumulam.7 Este estado de competição constante é, obviamente, o que torna a nossa exploração possível em grande medida.

Trabalhar contra o modelo competitivo pode levar não só a condições mais propícias e conviviais para a criação artística, mas também pode estabelecer as bases para relações profissionais verdadeiramente críticas. Para citar novamente Mark Fisher: “Quem melhor para te dar um puxão de orelhas do que os teus colaboradores?” A colaboração em pé de igualdade, pela sua natureza, leva a uma troca saudável de opiniões e críticas.

“Hustle culture” [N.T.: cultura do esforço e da correria] – ou, Excesso de trabalho permanente

Partindo da valorização do bem-estar e da rejeição das ideias capitalistas de eficiência, surge a rejeição da ‘cultura da correria’: a rejeição da pressão constante para produzir, para ser exibido, para construir um currículo, para se promover, para estar na moda, para considerar constantemente como cada aspecto da vida pode ser transformado num produto artístico, para depois consumir o máximo de arte e literatura artística possível. Esta busca incessante pela produtividade constante impõe um fardo insustentável aos indivíduos. A ‘cultura da correria’ glorifica a ocupação constante como um símbolo de status, criando uma narrativa falsa de que o valor de alguém é diretamente proporcional ao seu nível de actividade.

Isto não é apenas ridículo em si, como também prejudicial – para a nossa saúde física e mental e para o mundo que nos rodeia, enquanto consumimos recursos de forma frenética. A obsessão pelo excesso de trabalho e pela conquista constante não só leva à exaustão, como perpetua um ciclo tóxico que prioriza a quantidade em detrimento da qualidade.

A crescente ansiedade em relação à produtividade que assola as artes deve-se, em grande parte, à precariedade financeira específica da nossa área. Devemos questionar até que ponto a nossa participação nas estruturas que nos mantêm em situação precária perpetua a existência das próprias estruturas.

A excessiva dependência de financiadores, galerias, museus, colecionadores e comissários

Frequentemente, parece que um projeto artístico só pode seguir dois caminhos: um é seguir as directivas do mercado da arte; o outro é seguir as orientações dos financiadores estatais. A abordagem orientada pelo mercado reduz os esforços artísticos a meros ornamentos e investimentos, dando primazia à eficiência da produção e à rentabilidade acima de tudo, como já foi várias vezes salientado. A abordagem baseada no financiamento, por outro lado, leva a projetos burocratizados desde o início – as ideias são higienizadas e comprimidas dentro dos limites de caracteres de uma proposta. Frequentemente, temos projetos concebidos para serem melhores enquanto propostas, optimizados para aprovação por júris de desconhecidos antes de serem postos em prática de forma improvisada. De qualquer forma, como o dinheiro que recebemos das vendas e dos subsídios mal chega para nos manter, mas nunca o suficiente para nos permitir períodos de trabalho livre e sem rumo, somos muitas vezes forçados a direcionar toda a nossa prática para a produção destes projetos vazios.

Ao continuarmos a seguir as regras destas instituições, estamos indirectamente a legitimá-las e a perpetuá-las – em detrimento não só das nossas práticas individuais, mas também das práticas dos outros (uma vez que estas instituições continuam a reforçar a dominância de certas vozes enquanto marginalizam as restantes) e da possibilidade de criar estruturas alternativas.

Ao afastarmo-nos da “protecção” do mercado e das instituições estatais, temos mais oportunidades de trabalhar em colaboração, de nos apoiarmos mutuamente profissional, mental e emocionalmente nos nossos empreendimentos artísticos.

Quando optamos por trabalhar com financiadores, galerias, museus, colecionadores e comissários, temos sempre a opção de utilizar estrategicamente as nossas posições e recursos para criar espaços de construção de comunidade; ou mesmo de redirecionar totalmente os nossos recursos para outros fins de transformação social.8

Estratégias

Lentidão / Preguiça ou Ociosidade (“laziness”)

A lentidão e a preguiça surgem aqui como opostos diretos e antídotos para a eficiência e o excesso de trabalho. Abraçar um certo grau de preguiça desafia a busca incessante por uma actividade e produção constantes. Isto encoraja-nos a resistir à narrativa de que estar ocupado equivale a sucesso e a dar prioridade aos momentos de descanso e reflexão. Nestes momentos de aparente inactividade, as ideias germinam em segundo plano e pode emergir uma abordagem mais deliberada à produção artística. A procura intencional da lentidão e da preguiça nas nossas práticas artísticas representa um afastamento radical da obsessão predominante pela produtividade e uma mudança em direcção ao bem-estar.

Tornando o trabalho de cuidados visível

A grande maioria do trabalho envolvido em projetos artísticos é totalmente invisível e periférico ao que consideramos ser a criação artística propriamente dita. Como referido na secção sobre cuidado (acima), trata-se do trabalho incessante de manutenção para que tudo funcione sem problemas: o trabalho de facilitadores, fabricantes, organizadores, apoiantes e até mesmo educadores, que geralmente não recebe crédito e é mal remunerado (ou não é sequer remunerado).

Dentro de um sistema que destaca apenas o chamado “autor” de uma obra, tornar visível este trabalho de bastidores mina o mito da conquista estritamente individual e traça um retrato muito mais preciso das contribuições das pessoas para um processo criativo. Isto é mais importante do que a simples honestidade – como este trabalho de cuidado é realizado principalmente por artistas marginalizados, nomear e honrar as suas contribuições permite-nos tirá-los do “segundo plano” para que sejam apreciados pelos seus próprios méritos. Estabelece também as bases para exigir uma remuneração adequada pelo trabalho de cuidados a nível institucional.

Partilhando recursos

Num campo onde o acesso aos recursos determina, muitas vezes, a visibilidade e o sucesso, a partilha torna-se um meio de democratizar as oportunidades. Quebra as barreiras de entrada no mundo da arte para aqueles que podem ser marginalizados ou excluídos, permitindo que surja uma gama diversificada de vozes e perspetivas. O acto de partilhar vai para além dos meros recursos materiais; abrange a mentoria, o apoio e a criação de espaços comunitários onde os artistas podem trabalhar coletivamente.

Ao partilhar ferramentas, espaços e conhecimento, podemos criar uma rede de apoio que transcende as fronteiras dos indivíduos e dos projetos individuais. Este espírito colaborativo não só enriquece os nossos esforços artísticos, como também fomenta um sentido de solidariedade entre os trabalhadores da arte. A troca de recursos torna-se uma forma de entreajuda, fortalecendo a resiliência da comunidade artística face aos desafios e fomentando uma cultura de reciprocidade.

Criação de espaços e plataformas alternativos e independentes

Espaços alternativos e independentes são fundamentais para a existência de um discurso artístico vibrante. Oferecem um refúgio para a experimentação, permitindo aos artistas explorar temas e formas que podem ser considerados demasiado radicais ou pouco convencionais pelos espaços expositivos tradicionais. Permitem também que os artistas mais jovens encontrem o seu caminho na cena local e oferecem a todos os artistas locais oportunidades de se encontrarem e trabalharem em conjunto, contribuindo para a construção de comunidade. Os espaços independentes e alternativos tornam-se polos de colaboração, diálogo e troca de ideias, fomentando um sentimento de pertença entre artistas que se podem sentir marginalizados ou sub-representados em ambientes convencionais. Desta forma, os espaços alternativos desempenham um papel crucial no desmantelamento das hierarquias e, assim, desafiam o status quo. Tornam-se agentes vitais na descentralização da autoridade cultural, criando um caminho mais democrático e acessível para os artistas partilharem o seu trabalho com o público.

Auto-organização

Na sua essência, a auto-organização defende a ideia de que os indivíduos, trabalhando individual ou colectivamente, possuem a capacidade de imaginar, definir e agir de forma independente e consciente. Esta autonomia estende-se à liberdade de dependência de autoridades externas, permitindo aos artistas assumir o controlo total das suas próprias práticas artísticas.

Além disso, a auto-organização representa uma mudança paradigmática em relação às estruturas hierárquicas, enfatizando a colaboração, a autonomia e a tomada de decisões partilhada. Um dos principais pontos fortes da auto-organização reside na sua adaptabilidade e capacidade de resposta às necessidades dos artistas e das suas comunidades. Ao evitar estruturas burocráticas rígidas, as iniciativas auto-organizadas podem abordar rapidamente os desafios emergentes, experimentar abordagens inovadoras e manter-se resilientes face às pressões externas.

Redireccionamento de recursos institucionais – ou, ser astuto

A grande maioria de nós não tem outra opção senão participar no jogo institucional: candidatamo-nos a bolsas, trabalhamos com galerias, procuramos encomendas. Por vezes, até conseguimos ter sucesso nessas empreitadas. E, quanto mais sucesso tivermos, mais oportunidades surgirão. E, se tivermos sorte, de vez em quando, encontrar-nos-emos em posições de privilégio (talvez temporárias, ou talvez não) – controlando uma variedade de recursos. Ao contornar as regras quando podemos e ao redireccionar ou redistribuir alguns destes recursos quando podemos, conseguimos participar activamente no desmantelamento das desigualdades sistémicas, contribuindo para um cenário cultural mais justo e inclusivo.

Como sabemos, na maioria dos ambientes institucionais, os recursos têm sido historicamente concentrados em poucos, perpetuando a exclusividade e limitando as oportunidades para um leque mais diversificado de artistas. O acto de redirecionar recursos procura quebrar estas barreiras dando prioridade à inclusão, amplificando as vozes marginalizadas e promovendo uma distribuição mais democrática do apoio.

Este redireccionamento pode assumir várias formas, incluindo a oferta de ajuda financeira, oportunidades de exposição e recursos educativos. Os recursos financeiros são direcionados para projetos que se alinham com os valores da diversidade, equidade e inclusão, garantindo que os artistas de origens sub-representadas recebem o apoio necessário para prosperar. As oportunidades de exposição podem ser partilhadas com outros, trazendo à tona um espectro mais amplo de vozes e desafiando a dominância de certas narrativas e perspetivas.

O optimismo militante – ou, o utopismo como estratégia

Em contraste com o mero optimismo ingénuo, que é cego ao poder e aguarda com esperança algum tipo de transformação automática, o optimismo militante identifica possibilidades ocultas e actua como uma espécie de amplificador, tornando visíveis [utopias possíveis e concretas], envolvendo-se activamente nelas e integrando-as em novas configurações. As utopias concretas possuem também um poder prefigurativo e performativo: abrem espaço para imaginar alternativas e, ao fazê-lo, actuam contra a eficácia das narrativas TINA (“There is no alternative”).”⁹

O optimismo militante implica uma abordagem proactiva e determinada para cultivar a esperança, propondo narrativas contra-hegemónicas. Rejeita a aceitação passiva do status quo e abraça a crença de que, através do esforço colectivo e da acção criativa, um futuro melhor não só é possível, como também alcançável. Este optimismo opera como uma força motriz, motivando as pessoas a envolverem-se com o mundo de forma transformadora.

Isto complementa a noção de utopia, concebida não como “algo inviável e inatingível, mas antes como a descrição de um mundo desejado por vir”, que “promove a probabilidade de mudança e aponta para um futuro não realizado que difere do presente”. Assim, contém tanto uma descrição como um processo. O utopismo, tal como a utopia, contém uma descrição e um processo, mas enfatiza particularmente este último.10

Para muitos, falar de “optimismo” e de “utopia” soa irremediavelmente idealista e ingénuo, senão mesmo francamente constrangedor. Mas porque devemos renunciar à imaginação? A quem devemos entregar as possibilidades do nosso futuro? O derrotismo é uma profecia auto-realizável. Se nem os artistas se podem permitir ser idealistas, quem o poderá fazer?

Navegando pelas contradições – ou, ‘ficando com o problema’ [N.T.: conceito desenvolvido pela filósofa Donna Haraway e que dá título a um dos seus livros]

A liberdade de viver e agir de acordo com os valores que se defendem é, de certa forma, um privilégio. A maioria de nós precisa de comprometer os seus ideais para lidar com as questões práticas do dia-a-dia dentro dos sistemas existentes. Falamos sobre o potencial radical do ócio e da não-participação no sistema neoliberal; e depois temos de trabalhar em vários projetos maus ao mesmo tempo, só para pagar a renda. Trabalhamos com e para instituições que consideramos exploradoras. Competimos com unhas e dentes por bolsas, residências e encomendas.

Estas incongruências podem destruir qualquer sentimento de optimismo e fazer parecer que todas as tentativas de mudança sistémica são inúteis. A palavra ‘hipocrisia’ pode vir à mente. Mas então, quão possível é mudar um sistema de ‘fora’? Existirá sequer um ‘exterior’ que seja totalmente independente do ‘interior’? Existe apenas uma forma de promover a mudança? Existe apenas uma forma de ser ‘radical’?

A ideia de “ficar com o problema” abraça a complexidade inerente a estes esforços. Permanecer com o problema significa reconhecer o desconforto das contradições e confrontar os desafios e as falhas inevitáveis, sem abandonar a procura de uma mudança transformadora. Devemos permanecer com ele o tempo suficiente para nos ajustarmos, adaptarmos e tentarmos novamente. A mudança que procuramos é o resultado de um processo contínuo de propor, testar, criticar e voltar a propor; de crescer, pressionar, romper, dividir e crescer uma vez mais.

Notas

1. G. D’ Alisa, F. Demaria, and G. Kallis, ‘Degrowth’ in G. D’ Alisa, F. Demaria, and G. Kallis (eds), Degrowth, A Vocabulary for a New Era, Routledge, 2015, p. 3.

2. F. Demaria, F. Schneider, F. Sekulova, J. Martinez-Alier, ‘What is Degrowth? From an Activist Slogan to a Social Movement’, Environmental Values, vol. 22, 2013, pp. 191-215.

3. G. D’ Alisa, F. Demaria, and G. Kallis, ‘Degrowth’ in G. D’ Alisa, F. Demaria, and G. Kallis (eds), Degrowth, A Vocabulary for a New Era, Routledge, 2015 pp. 1-17.

4. F. Demaria, F. Schneider, F. Sekulova, J. Martinez-Alier, ‘What is Degrowth? From an Activist Slogan to a Social Movement’, p. 197.

5. Convivialist Manifesto. A declaration of interdependence (Global Dialogues 3), Käte Hamburger Kolleg / Centre for Global Cooperation Research (KHK/GCR21), 2014.

6. Mark Fisher, ‘Against Competition’, Blunt Art Text (B.A.T.), April 2006.

7. Para uma análise mais detalhada ver: K. Szreder, ‘W is for winner takes it all’, in The ABC of the projectariat: Living and working in a precarious art world, Manchester University Press, 2021; e: G. Sholette, Dark Matter: Art and Politics in the Age of Enterprise Culture, Pluto Press, 2010.

  1. 😄

9. Barbara Muraca, ‘Forward’, in Degrowth in Movement(s): Exploring Pathways for Transformation, ed. Corinna Burkhart, Matthias Schmelzer, and Nina Treu (Winchester, UK ; Washington, USA: Zero Books, 2020). p. 6

10. Ekaterina Chertkovskaya, Alexander Paulsson, and Stefania Barca, ‘Introduction: The End of Political Economy as We Knew It? From Growth Realism to Nomadic Utopianism’, in Towards a Political Economy of Degrowth, ed. Ekaterina Chertkovskaya, Alexander Paulsson, and Stefania Barca, Transforming Capitalism (London: Rowman & Littlefield International, 2019). p. 8-9