O que é (e, mais importante, o que não é) o decrescimento?
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O que é (e, mais importante, o que não é) o decrescimento?

Apesar da popularidade da Conferência Beyond Growth realizada em Maio no PE, nas semanas seguintes assistiu-se a um debate cada vez mais acalorado e mal informado nos Estados-Membros sobre o significado do termo “decrescimento”. Nick Meynen descontrói 6 mitos comuns.
O que é (e, mais importante, o que não é) o decrescimento?

Este texto, da autoria de Nick Meynen*, foi publicado originalmente em Knack (Junho de 2023) e traduzido pela Rede para o Decrescimento em Portugal a partir da versão inglesa

No passado mês de Maio decorreu a maior conferência organizada no Parlamento Europeu sob a Comissão von der Leyen, intitulada “Beyond Growth”. Durante o evento, foram discutidas novas abordagens ao debate sobre o crescimento económico, incluindo os prós e os contras da abordagem do decrescimento à economia. Mas, talvez porque o termo “decrescimento” permanece pouco familiar na opinião pública, as subsequentes discussões mal informadas nos principais meios de comunicação social resultaram na disseminação de factos alternativos e na desinformação.

Várias figuras públicas, incluindo o primeiro-ministro belga Alexander De Croo , partilharam recentemente opiniões críticas, mas mal informadas, sobre o conceito de decrescimento. “Às vezes ouvimos pessoas dizerem que a solução seria o decrescimento, o mito de que poderíamos combater as alterações climáticas com uma estratégia de menos: menos crescimento, menos investimento, menos consumo, provavelmente também menos criação de emprego”, – disse De Croo.

Mas o que significa então “decrescimento”? Vamos dar um passo atrás primeiro.

“Decrescimento” é uma adaptação do termo original francês “ décroissance”. A palavra aponta para um conjunto de teorias económicas, desenvolvidas ao longo das últimas duas décadas, acumulando até à data mais de 600 publicações académicas revistas por pares (peer-reviewed). Mas, para além de ser um tema de investigação, o decrescimento também se relaciona com um movimento socioecológico em rápido desenvolvimento, ao qual se juntaram cientistas, economistas, membros preocupados do público e, mais recentemente, representantes de quase todos os principais partidos políticos (excepto da extrema-direita), combinando esforços neste brainstorming coletivo para alcançar uma maior sustentabilidade.

O principal objectivo do decrescimento pode ser mais bem descrito da seguinte maneira: como fazer a transição necessária para uma economia sustentável e amiga do ambiente, de uma forma inteligente, social e democrática. A economia ecológica, a economia política, a geografia, a biologia e a ecologia política são apenas algumas disciplinas académicas que contribuem para o crescente corpo de conhecimento que molda o tema do decrescimento. Tal como Keynes e Friedman antes deles, os economistas do decrescimento não estão interessados em ficar fechados numa torre de marfim [teórica e académica], mas em ter um impacto real na sociedade.

Os defensores da abordagem do decrescimento baseiam-se no crescente conjunto de provas científicas que apontam a relação entre crescimento económico contínuo e a destruição e empobrecimento graduais [da sociedade] como consequência do seu impacto ambiental.

O decrescimento opõe-se à ideia de “crescimento verde”. Os defensores do crescimento verde promovem a consciência ambiental e o cuidado pela humanidade, mas agarram-se à crença de que o crescimento e os danos causados ​​pelo crescimento podem ser dissociados de forma atempada e suficiente. No entanto, vários estudos em revistas académicas de topo, como a Nature e a Science, refutaram completamente este pressuposto central. Desde 2019, quando o EEB publicou o seu inovador e muito citado relatório intitulado “Decoupling Debunked”, o ónus da prova relativamente às perspectivas de dissociação passou, sem dúvida, para os produtores verdes. Até à data, todas as refutações nos meios de comunicação da Flandres [no norte da Bélgica, de onde escreve o autor] basearam-se em dados selectivos que não conseguem demonstrar como esta dissociação é ou pode ser adequada, e atempada, face à realidade.

Tal como explicado no relatório “Decoupling Debunked”, a intensidade de carbono [utilizada] na economia deverá cair 100 vezes mais rapidamente do que no presente – um número totalmente irrealista – para que o crescimento verde funcione. Por sua vez, o decrescimento como necessidade física é uma verdade inconveniente que frequentemente encontra resistência populista e desinformação. Enquanto continuarmos apenas a adicionar energia renovável [ao mix energético] e não eliminarmos gradualmente a energia fóssil, o nosso problema existencial continuará a aumentar.

As ciências naturais, portanto, reconhecem que a taxa de “dissociação” [entre crescimento económico e impactos ecológicos] na realidade não será suficiente para travar o colapso ambiental. O pouco tempo que temos para regenerar os ecossistemas já é insuficiente. O crescimento contínuo torna esta tarefa cada vez mais desafiante. Uma publicação recente na Nature mostra que sete dos oito limites planetários (um conceito que estabelece limites às actividades humanas em diferentes esferas, assegurando uma auto-regulação do ambiente do planeta) já foram ultrapassados, cujo custo apenas agora começou a revelar-se. No nosso sistema climático, assim como na forma como os nossos corpos lidam com a poluição química, existe um intervalo de tempo entre os danos infligidos e as consequências finais. Tanto em termos de saúde planetária como pessoal, isto significa que tudo o que vemos hoje será pior do que aquilo que já testemunhamos, porque os danos causados ​​a ambos os sistemas são piores hoje do que eram há dez anos.

Os economistas do decrescimento baseiam-se em dados sobre o que torna possível a vida na Terra, enquanto os economistas clássicos baseiam-se em dados sobre dinheiro, como o Produto Nacional Bruto (PIB), e em fluxos de capital.

No entanto, estes dois conjuntos de dados são fundamentalmente diferentes. O dinheiro pode ser visto como uma construção social – algo que não se pode comer ou beber. Em contraste, a fertilidade do solo, a disponibilidade de oxigénio e a estabilidade climática são realidades físicas, essenciais e insubstituíveis. Os economistas do decrescimento oferecem modelos para uma sociedade sustentável dentro dos limites planetários, algo que os economistas clássicos ignoram.

As propostas políticas baseadas em conceitos de decrescimento abrangem um amplo espectro de domínios. Como exemplos temos uma distribuição muito mais inteligente da quantidade de trabalho disponível, um sistema monetário diferente daquele em que a dívida e os juros criam uma dependência eterna do crescimento, e uma redistribuição do orçamento de carbono restante baseada na pegada ecológica. Algumas propostas enraizadas no decrescimento também são implementadas às escalas local, regional ou mesmo nacional, mas para serem verdadeiramente eficazes e transformativas, uma escala continental poderá ser mais adequada. E nenhum continente está em melhor posição para beneficiar de uma transição decrescentista para uma economia pós-crescimento do que a Europa.

Abaixo são apresentados seis dos mitos mais comuns sobre o decrescimento partilhados nos meios de comunicação - em confronto com os factos reais.

Mito 1: O decrescimento é ideológico.

O que significa: Esta frase pressupõe que quem a diz não se guia por ideologias.

Realidade: A ideologia dos economistas clássicos baseia-se numa teoria de livre concorrência e livre comércio gerida pelos mercados, enquanto os economistas do decrescimento consideram a realidade terrena como base. Se a palavra “ideologia” for usada de uma forma depreciativa e “não objectiva”, aplica-se muito melhor aos economistas clássicos.

Mito 2: Decrescimento é recessão.

O que significa: Pressupõe que os defensores do decrescimento são cegos perante a miséria que uma recessão cria.

Realidade: O decrescimento é uma transição social e bem organizada para uma economia com serviços básicos garantidos e melhores empregos, pagos através da redistribuição da riqueza e da implementação de políticas que combatem a riqueza extrema. A recessão é um problema crescente causado por contradições inerentes aos actuais sistemas de exploração e extracção, que tentam criar riqueza infinita a partir de recursos finitos. E sim, numa recessão, os pobres geralmente acabam pagando aos ricos. Mas esse é, infelizmente, o preço do crescimento.

Mito 3: Decrescimento é comunismo.

O que significa: Pressupõe que os defensores do decrescimento querem pobreza e ditadura.

Realidade: O decrescimento opõe-se aos objectivos de crescimento económico como bússola política, quer aconteça num quadro capitalista ou comunista. O decrescimento mostra que a riqueza extrema é uma fonte directa de pobreza e de níveis impossíveis de destruição ecológica. Os decrescentistas também defendem a democratização da economia, bem mais do que os economistas neoclássicos. De facto, são os países que seguem o caminho neoliberal que mais rapidamente degeneram em ditaduras. Na realidade, é o crescimento nos países de rendimento elevado que cria pobreza e ditadura .

Mito 4: O decrescimento é anti-inovação.

O que significa: Pressupõe que, no decrescimento, a tecnologia é um tabu.

Realidade: Os defensores do decrescimento querem que a tecnologia e a inovação garantam a transição necessária, mas são contra políticas em que a tecnologia e a inovação apenas transferem o problema para outro lugar, em vez de o resolverem. Se as inovações nos carros e na habitação forem compensadas pelo aumento do tamanho do carro e da casa, o resultado líquido em emissões será ainda maior. Argumentam também que não há razão para que o próprio governo não imprima o dinheiro para a tecnologia e inovação necessárias. O desvio destrutivo dos fundos para a inovação necessária na criação de dinheiro para os fins errados,  é o verdadeiro problema, não a tecnologia em si.

Mito 5: O decrescimento é um ataque ao seu estilo de vida.

O que significa: pressupõe que os decrescentistas são hippies.

Realidade: Os promotores do crescimento verde enfatizam que todos temos a opção de viver de forma diferente, mas muito poucos defensores do decrescimento estão a tentar convencer as pessoas a mudarem de estilo de vida. Os defensores do decrescimento geralmente defendem uma abordagem muito mais eficaz para comportamentos excessivamente destrutivos. Por exemplo, um cartão de crédito de carbono que não reclama, mas antes garante que 1% de todas as pessoas que viajam de avião não permaneça responsável por 50% de todas as emissões das aeronaves. Seria possível continuar a viajar de avião, mas não todos os dias. A publicação “ Cientistas alertando sobre a riqueza ” na Nature afirma que a transição necessária só pode ser eficaz se as mudanças profundas no estilo de vida forem impostas a um segmento específico da população mundial – aquele que é de longe o mais desproporcionalmente impactante. Para os defensores do decrescimento, por exemplo, não há lugar para frivolidades como o turismo espacial. Embora muitos defensores do crescimento considerem estas ideias um ataque à classe média ou à liberdade, a realidade é outra. Elas são um apelo para acabar com a liberdade autoproclamada dos ultra-ricos para tirar a liberdade de viver de todos.

Mito 6: O decrescimento ignora os “países em vias de desenvolvimento”.

O que significa: pressupõe que o decrescimento é branco e elitista.

Realidade: Os promotores do crescimento verde defendem a sobre-exploração nos países “em vias de desenvolvimento” e o comércio desigual que prejudicam activamente o desenvolvimento dos países mais pobres num sentido mais amplo do que em meros termos monetários. Os defensores do decrescimento querem reduzir esta pressão muitas vezes violenta. Os países que têm resistido a esta pressão incluem a Costa Rica, o Vietname, Cuba, o Butão e o Uruguai. Todos eles alcançaram um padrão de vida mais elevado com uma pegada menor, quando comparados com os países em vias de desenvolvimento que seguem fielmente o crescimento económico como um objectivo político prescrito pelo FMI e pelo Banco Mundial. Para os países “em vias de desenvolvimento” ricos em recursos, a lógica do crescimento é muitas vezes uma maldição que causa estragos e alimenta guerras. Investigadores decrescentistas  publicaram dados concretos na Nature sobre como poderia ser na prática a justiça climática internacional, baseada na responsabilidade histórica.

No mundo real, que ainda segue o paradigma do crescimento verde, as expropriações de terras, a poluição química, os esgotamentos e a instabilidade climática acumulam-se a um ritmo crescente, ao mesmo tempo que os nossos solos utilizáveis ​​e a disponibilidade local de matérias-primas essenciais, como água potável e areia para construção, estão na verdade em declínio. Este paradigma já está a provocar um colapso.

Os defensores do decrescimento também alertam para a “visão de túnel” da descarbonização. O clima, o uso da terra, os solos e a biodiversidade estão inextricavelmente ligados. Uma parte do sistema globalmente conectado não pode simplesmente ser colocada em “pausa”, como sugeriu o Primeiro-Ministro De Croo. O restauro da natureza não é uma mera questão opcional a ser tratada. Tal escolha política aumentaria o preço global para a humanidade, o que viola o dever do cuidado. A única pergunta a qualquer líder político que apele a uma pausa nas extinções, ondas de calor e furacões deveria ser: “a quem apelamos”?

Os defensores do decrescimento não pretendem reduzir o PIB, mas estão preparados para aceitar essa consequência como um efeito provável da contracção necessária e muito mais rápida de sectores que são demasiado prejudiciais, como as indústrias fósseis, química e de carne, bem como as indústrias (privadas) de aviação. E, como sociedade, precisamos de estar preparados para esta consequência e reduzir a nossa dependência dela para criar bem-estar.

A melhor síntese científica disponível aponta cada vez mais para o decrescimento como uma necessidade , desde o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) em relação ao clima até à Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos (IPBES) em relação à biodiversidade. Uma rápida redução da extracção e produção mais prejudiciais é um pré-requisito cientificamente comprovado para alcançar a sustentabilidade global, a justiça social e o bem-estar.

O decrescimento como disciplina e movimento académico está em ascensão imparável. A Conferência Beyond Growth, o evento mais significativo no mandato de von der Leyen, é uma consequência lógica do facto de que as verdades acabarão por vir à tona. Uma base de dados sobre o decrescimento recentemente divulgada , que é apenas a ponta de um iceberg, já lista mais de 400 iniciativas políticas de decrescimento, mais de 600 artigos científicos, mais de 500 livros em 28 línguas, mais de 40 cursos e mais de 240 organizações.

A geração Greta Thunberg está totalmente cansada de toda a lavagem verde e mentiras. Tanto ela como nós, entendemos bem isso. Isto não significa que desistimos da luta por um futuro em que a humanidade e a natureza possam prosperar juntas. Significa que temos esperança na disciplina e no movimento do decrescimento, uma vez que é actualmente o único que oferece soluções baseadas em evidência para sair da embrulhada criada pelos falsos profetas do crescimento.

* Nick Meynen e a equipa mais alargada da transição económica do EEB contribuíram de muitas maneiras para a marcante Conferência Beyond Growth e para as suas repercussões. Aqui pode assistir novamente ao nosso painel de debate com Kate Raworth e o economista-chefe da DG GROW, obtenha uma cópia da nossa revista especial “ Imagining Europe Beyond Growth ”, consulte a carta aberta com as nossas principais exigências políticas e outras fontes de informação em qualquer das 23 línguas disponíveis e consulte a página de transição económica do EEB para obter mais detalhes sobre a equipa e o seu trabalho.

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